Bicho de sete cabeças

Bicho de sete cabeças

(*) Texto de Aparecido Raimundo de Souza.

O SUJEITO METE A CHAVE NA PORTA e gira a maçaneta. A moça que vem com ele, logo atrás, ao olhar para o interior do pequeno apartamento, começa a reclamar:

- Credo, Moacir, que escuridão. Acenda a luz.

- Não tem luz.

- Não pagou a conta?

- Você me conhece muito bem, Margarete e sabe que odeio lugares iluminados. Por isso me mudei para este apartamento. E ai, você vem ou vai pisar na bola?

- Vou, né. Fazer o quê. Cada louco com a sua mania. Não sei como você consegue viver no meio desse breu.

- Já me acostumei. E você também se acostumará. Venha comigo. Vou te levar pro quarto. Só me de um minuto. Deixa passar a chave na porta.

O casal segue praticamente às apalpadelas. Não se vê um palmo adiante do nariz.

- Calma. Não precisa correr ou se afobar. A cama está logo à direita. Cuidado com a mesa à frente. Evite dar topadas. Pode machucar a perna dela...

- Idiota. Você não tem por ai uma vela, uma caixa de fósforos ou um isqueiro?

- Não.

- Aparelho celular?

- Não gosto de celular, você está careca de saber. Espera ai, mocinha: está querendo ligar pra alguém?

- Não seu imbecil. Só queria usar a luzinha da lanterna do telefone pra iluminar essa joça. De onde você tirou essa esquisitice de viver igual morcego?

- Deixa de fazer perguntas. Tira os sapatos, a saia, a blusa, fique a vontade. Enquanto isso seus olhos por si só se acostumarão à penumbra.

- Penumbra? Chama isto de penumbra. Me responda uma pergunta?

- Sim, pergunte.

- Como acende o fogão?

- Não acendo.

- E como come?

- Com a boca...

- Engraçadinho!

- Não uso fogão. Quando quero comer, vou ai na rua, você viu quando estávamos chegando? Tem uma padaria e uma lanchonete logo ao lado.

- Você é pirado mesmo, acabei de crer.

VINTE MINUTOS DEPOIS.

- E ai, ta difícil achar o caminho?

- Um pouco. Mas não se avexe. Logo chegaremos lá.

- Não querendo ser chata, mas já sendo. Pelo jeito, embora você viva igual bicho do mato nesta escuridão, parece que seu lado maluco ainda não se familiarizou muito com a falta de luz. Cá entre nós: a quanto tempo não mexe com essas coisas?

- Já perdi a conta. Chega um pouquinho prá trás.

- Uau! Que cama barulhenta. Por que você não tira o plástico?

- Gosto do barulho. Pode ver que é a única coisa que perturba o silencio por aqui. Dá pra jogar esse travesseiro para o outro lado?

- Se incomoda se eu o colocar sob o bumbum.

- Meu ou seu?

- Meu claro. Fico numa posição mais cômoda.

- Ta legal, eu deixo, mas com uma condição.

- Qual?

- Que você não peide no pobre coitado.

Risos.

- Claro que não. Seu bobo. E o buraquinho?

- Nada. Nunca vi um trocinho tão apertado. E eu que pensei já estivesse bem treinado...

Mais risos.

- Quer que eu passe vaselina?

- Não estou achando nada engraçado. Deixa suas piadinhas pra depois!

- Minha intenção é te descontrair.

- Pareço agitado?

- Se tivéssemos no claro e eu pudesse ver seu rosto... Pela voz parece tenso. E espia: está suado feito um porco. Parece saído debaixo de um chuveiro.

- O que sugere?

- Já tentou apalpar com a mão?

- Não havia pensado nisso. Puxa o lençol.

- Já puxei.

- Tive uma idéia. Vira de ladinho.

- Pra quê?

- Vira.

- Ta legal. Pronto. Conseguiu?

- Quase.

- Vá devagar. Espera ai: me da sua mão.

- O que pretende?

- Vou encostar seu dedo nela.

- Pode deixar que eu acho sozinho!

- Não precisa ficar irritado. Só quero ajudar, ser gentil...

MAIS VINTE MINUTOS SE PASSAM. PARECE UMA ETERNIDADE.

- Merda! O que foi que você fez agora, Margarete? De novo esse travesseiro! Que diabo! Você está... Você está de quatro?

- Não, seu besta. Minha bunda virou por vontade própria meu cu pra lua sem eu perceber.

- Por que está de quatro?

- Meu anel. O desgraçado caiu por aqui. Porra, por que eu não enfiei um holofote na bolsa?

- O que esta tentando fazer, afinal?

- Te ajudar, Moacir.

- Com a bunda arrebitada pro meu lado? Quer me dizer como?

- Mal agradecido.

- Deita de bruços.

- De bruços? Meu Deus, pra quê?

- Pretendo mudar de posição. Cuidado agora. Estou passando por cima de você.

- Ai, cacete! Devagar, Moacir. Como você é desajeitado.

- Eu?

- Não, minha vovozinha.

- Desculpa.

- Aiiiiiiiiiiiiiiiiiii!...

- O que foi desta vez?

- Você pisou no meu braço. Doeu.

- Ta legal. Perdão. Precisava gritar feito uma debilóide?

- Estou furiosa, Moacir. Odeio casa escura. Perdi meu anel, você pisou no meu braço, não acha esse maldito buraco e eu vou acabar não vendo a novela.

- Margarete, você veio até aqui pra ver novela?

- Vim pra te ver, seu jumento. Estava com saudades. Só não esperava ser recebida no escuro.

- Eu mereço!

- Termina logo. A novela vai começar daqui a pouco.

- Se você parasse de resmungar e me ajudasse, de fato...

- Não seja por isso. Cadê o macho. Bota aqui na minha mão. Meu pai do céu, que dificuldade pra cutucar um simples buraco.

- Ta legal. Aceitei a sua ajuda. Agora fecha a matraca.

- Esta sentindo Moacir?

- To, Margarete.

- Vai Moacir, mete logo a parada.

- Ô fêmea difícil. Eita! Vivaaaaaaaaaaaaaa! Consegui!...

A imagem da pequena televisão, de repente, ilumina o ambiente. Os dois irmãos sorriem e se acomodam. Cada um de um lado da cama. –“Bendita tomada!”.

A novela acabara de começar.

(*) Aparecido Raimundo de Souza, 57 anos é jornalista.

Aparecidoescritor
Enviado por Aparecidoescritor em 08/02/2011
Código do texto: T2779204