O BULE DE CHÁ

Ainda sinto a presença dela ao meu lado, enquanto fecho a janela que está entreaberta. Não gostaria de ter a sensação que tenho agora. Percebo que me serve o chá da tarde no alpendre da casa da colina, é verão. Uma breve interrupção nos pensamentos, enquanto refugio neste apartamento minhas neuroses, meus medos e outros sentimentos. O líquido com um aroma agradável rompe do bule alcançando a bela xícara com motivos orientais; naquela tarde, beirando a noite, um vento frio sopra repentino vindo da direção do lago; algo tomou conta de mim. Enfim, guardo, todos esses sentimentos em uma caixa, construída em bambu; é firme para carregar, com alças como de uma algibeira em lona, grande o bastante para armazenar o que almejasse guardar; mesmo o que rompeu após chá e o anoitecer naquele lugar.

Um pouco afastado da cidade e de toda balburdia das pessoas, a casa nos dava uma tranqüilidade invejável, porém aquele leve sopro de brisa brotou rápido; a noite fez com que o céu cinzento logo tomasse a nossa tarde e a solidão fosse beirando a morada; com pouco, tomava a sala com seus móveis em madeira de pinho; entalhes que davam um ar colonial. A lareira ao fim cobria todo o ambiente de uma elegância regada a um vinho francês. A sombra tomou tudo, até que, no meio da noite a chama foi ficando menor e como previsível, foi empurrada pela viração para um canto qualquer do esquecimento; a lareira apagou.

Arredamos nossos corpos de vidro para o corredor que ligava a antiga sala aos quartos; e era recoberto por fotografias tiradas durante a minha vida; arrepiei-me; foi repentino, ela percebeu, olhou fixamente nos meus olhos, então chorei, estava com medo, o pavor daquela noite era transparente; aconchegou-me em seus braços, enquanto a dor tomava conta do meu coração, senti que o cheiro em minhas narinas eram os mesmos das outras mulheres, mesmo as que eu tive na adolescência, e que se foram pelas estradas que separam as pessoas em felizes e infelizes. Então por um minuto tive a sensação de ter adormecido e de a alegria ter tomado conta naquele pequeno flash temporal em mim; mas, não. Seguimos repuxados para o interior do ambiente que aos poucos ia sendo tomado por uma frieza, uma cólica, um abismo sem fim. Na cozinha não podíamos mais dispensar nossas vontades, acender o fogão de lenha; aquilo tudo havia vestido a única chance de repor meu sorriso. Preso aquele corredor estreito, já permanecia de pés no chão, dado a tanta dor e sofrimento; exilei-me no quarto, tranquei a porta, vislumbrei cada parte delicada das paredes e vi enfim que havia passado toda a vida embutido naquele chalé no alto da colina, isolado em minhas fraquezas, nunca havia visto um jardim florir diante de tanto caos. Era sempre a parcimônia de uma xícara de chá ao final da tarde, a luz da lareira e a quentura de suas chamas ou então, um adocicado almoço junto a um punhado de fumaça. Mas, no quarto onde as dores são mais contemplativas, mais expostas e voláteis pude então perceber um leve toque de amargura em todos nós; fechei os olhos que nunca conseguia fechar sem antes vomitar todos os pesadelos e em seguida sorver-los sem que ninguém percebesse os monstros que apregoavam meus temores; devorei-o, para felicidade de todos. A noite se expandiu mais rapidamente com estrelas brilhantes e amantes; que são apenas figurante nesta história. Deixei uma parte de mim no corredor, a que sofria mais e que, no entanto, podia ser mais feliz.

Diante de tantos retratos e uma quantidade de objetos estranhos pendurados na parede; guardo os olhos azuis dela, os únicos que pude extrair das que tive; ao lado desse amuleto, meu conjunto de chá que trouxe da colina, ainda exala um cheiro acre. Olho da janela deste apartamento o outro lado da avenida, a parada de ônibus; muitas pessoas esperam o coletivo e eu observo a próxima vítima e pode ser você.