Automovel como arma de guerra
Há fatos de somenos importância em nossas vidas e que simplesmente passam. Outros, por sua relevância, marcam uma passagem otimista e digna de registro. Outros, embora insolúveis e constrangedores, nem por isso deixamos de registrá-los. Talvez a fim de que as futuras gerações sintam o quanto fomos incompetentes em não resolvê-los. Estas gerações certamente resolverão tais problemas, tido para a nossa era como obstáculos. E, ironicamente, rirão do nosso fracasso.
A propósito, como um desses insolúveis problemas, coloco em pauta a coqueluche do momento: a matança no trânsito. Ao fazê-lo não visarei apenas o trânsito da nossa Soterópoles. Elevarei o problema à esfera nacional. Aliás, vou mais além. O promoverei à categoria dos insolúveis problemas internacionais.
O trânsito tem matado impiedosamente. Sem preconceitos de raça, cor ou distinção de classes. Morrem nas ruas das grandes metrópoles, todos os dias, homens, mulheres e crianças; pretos e brancos; ricos e pobres; intelectuais e analfabetos; loucos e sanos. Visto por esse ângulo, ninguém é melhor que ninguém.
Li recentemente num periódico sobre a minha mesa, uma notícia estarrecedora. Quem colocou ali não interessa. O interessante, de fato, era o que nele estava escrito. Isto sim. Uma estatística realizada nos Estados Unidos da América revelou que no período de 55 anos perderam a vida em acidentes de trânsito mais cidadãos do que em todas as guerras das quais aquela nação participou desde 1774.
Imediatamente parei a leitura. Faltou-me ânimo para continuar. Senti náuseas pelas mortes violentas.
Parei a leitura e me pus a pensar. Descobri o quão imbecis somos nós humanos. Resolvemos com muita eficiência problemas bem mais complexos.
Comunicamo-nos com todos os povos do globo terrestre em frações de segundos; construímos máquinas, verdadeiros engenhos, capazes de nos substituir em quase todos os nossos afazeres, inclusive a nossa faculdade de pensar; já pisamos na lua; enviamos naves espaciais em viagens interplanetárias... Contudo, por ironia do destino, o trânsito continua matando. E, matando mais que a própria morte permita-me que assim o diga.
Aqui, na nossa Soterópoles também se morre por acidente de trânsito. Mas a culpa deve ser de Tomé de Souza por ter fundado a cidade com suas famosas ruelas e vielas. E, se não for dele, também não sei a quem imputá-la.
As estatísticas, em nosso país, revelam um número alarmante de pessoas mortas diariamente neste transito louco. Os Estatísticos, às vezes, se perdem em dados e gráficos ascendentes. Prevêem até quantos morrerão nos anos de 1975, 1976... 2020. Claro, são estimativas. Mas estimativas que não deixam de ser “otimistas” em torno das mortes. Para eles não interessa ser João ou Maria a pessoa morta. Muito menos que seja um parente meu ou seu. Aliás, o que eles têm a ver com um parente nosso? Eles nem nos conhece. E se nos conhecessem... Também nunca os vimos mais gordos.
O que lhes interessa são os trocados, frutos dos cálculos macabros pingando mensalmente em suas mãos sujas. As mesmas mãos que conduzem aos bolsos.
Pensei.
Às vezes não gosto de pensar, porque penso o que não devo. Mas pensei. E uma idéia hipotética saltitou-me à mente. Se o trânsito, nos Estados Unidos, matou em 55 anos mais gente do que as vítimas de todas as guerras nas quais aquela nação tomou parte desde 1774, porque, então, não usarmos os veículos como arma de guerra? Assim, exterminaríamos com todos os Joões e todas as Marias da face da terra mais rapidamente.
Pensei.
Como disse, não gosto de pensar porque às vezes desaba da minha mente um amontoado de maus pensamentos. Todavia, pensei também em voltarmos ao início de tudo. Reviver nossa origem, longe destes criminosos que se arrastam sorrateiramente como cobras pelo manto preto das avenidas, em busca de mais uma vítima. Falo dos automóveis. Para eles não se têm penalidades. Por isso eles voltam às ruas sempre matando. Juiz nenhum - por mais carrasco - condenaria um automóvel à prisão perpétua. Como seria divertido! Pagaria pra ver!
Naquele tempo sim, vivia-se mais. Não se falava em mortes no trânsito com tamanha freqüência. Vivíamos longe dos automóveis. Eu os odeio. Odeio todos os veículos circulando nas ruas das cidades, independentemente de porte, marca ou cor. Que morram todos! Os automóveis matam. Os motoristas a guiá-los, assinam a sentença de morte.
Podem até dizer que estou acometido de uma “psicose veicular”, mas isto não importa nem me diz respeito. Importa-me e me diz respeito o fato de que, quando um veículo não pode ceifar a vida violentamente, ele o faz à prestação através do dióxido de carbono, substância tóxica por ele expelida, inalada por nós diariamente.
Por isso eu os odeio.
Que todos tenham um fim violento.
Cronica escrita em 1974, publicada no livro: "O Homem que invulta e outros causos" em 2008.