Meta Morfose

Era tudo muito fácil pra ele, segundo os outros. Em seu âmago, a dificuldade residia na hesitação, na insegurança, do medo do "não" que tanto ouvira durante a vida em outros campos; em casa, na escola, nas brincadeiras da rua. Por que com as mulheres seria diferente? A dificuldade estava arraigada em seu cerne e por mais que tivesse ciência de que as coisas andavam boas para o seu lado, não conseguia admitir isso pra si mesmo. Mas aproveitava a boa fase. Com uma mistura de ombros largos, cabelos cacheados que emprestavam-lhe ares querubínicos, senso de humor ácido e um jeito largado de se vestir, ele suscitava um certo encanto que para algumas damas era irresístivel. Queriam cuidar dele. Mexer naqueles cachinhos. Melhorar sua vestimenta. Largarem os braços sobre aqueles ombros largos e fortes. Partilhar do seu sarcasmo. Ele não se apaixonava. Não profundamente. Sua paixão era rasteira, sazonal. Uma ou outra conseguia enlevar sua respiração a um suspiro. Ele acreditava em amor, até. Mas no amor das outras pessoas. Sentia que fora podado de alguma coisa sobre o amor. Gostava de ver pessoas apaixonadas. Queria se apaixonar. Mas era inapto. Sua missão era uma só: foder. Sua missão era ficar quieto até que a presa aparecesse e fosse atraída para o seu covil. Uma vez lá dentro, o bote era inevitável. Era um caçador. Agia no erro. Gostava das palavras capciosas que soltava no ar. Eram seu engodo. Uma vez com a presa dentro de seu covil, agia. E agia como se fosse seu último banquete, seu último suspiro. Sua última transa. Entregava-se à volupia como um devoto a sua crença. E, uma vez satisfeito, saia à francesa como um bom herege. Era o seu jogo. E todas gostavam de jogar, também. Até que um dia, surgiu uma certa moça. Parecia imune à sua combinação de belezas e imperfeições. Era parcialmente indiferente ao que muitas, aparentemente, dariam um braço para usar um pronome possessivo na primeira pessoa do singular sobre. "Parcialmente", visto que estavam juntos numa mesa de bar. Não exatamente se atracando, mas a caminho do enlace labial. E, de repente, a mágica acabou. A mágica para as demais. Ou para ele próprio, que parou de irradiar a fosforescência da concupiscência e agora sentia algo brilhando dentro de si próprio. Como era de se esperar, houveram agruras com suas antigas presas. Não queriam, não podiam e não conseguiam acreditar no que estava acontecendo. "O sex machine apaixonado?". "O canalha apaixonado?". "O traste apaixonado?". Eram as perguntas que ecoavam nos corredores da empresa, nos banheiros dos bares que ele freqüentava e em algumas redes sociais na internet. Ah, aquele Império da Luxúria prestes a ruir por conta de uma estranha, de uma invasora! Um outro dia, um outro bar... Com ela. Com aquele alienígena. Ele perscrutava os olhos da moça procurando o brilho exato que o fazia ferver por dentro e idiotizá-lo por fora - pois sim, porque perto dela, diante daquela altivez, daquela beleza imponente e daqueles olhares misteriosos, "idiota" era a palavra que mais se adequava ao molde de seu estado de espírito. "É assim que as pessoas ficam quando se apaixonam?", perguntava pra si mesmo. Mau grado seu, a moça continuava com sua carapaça de indiferença que a protegia daquela irradiação de energia de bode no cio que ele exalava perto das outras e não demorou para que eles deixassem de se ver por escolha dela - obviamente. O tempo seguiu seu curso, como há de ser, mas as reminiscências daqueles fortuitos encontros assombravam-no com uma perniciosa força hercúlea; invadiam sua alma, espírito, mente, corpo; embotavam-no, colocavam-no num estado de transe que começou a preocupar seus amigos e familiares. Já não se empolgava mais com suas caçadas. Suas presas pareciam ser alimento insuficiente para suas necessidades. Queria mais! Precisava de mais! Precisava de uma só coisa: dela. E queria uma só coisa: ela. Com a alma transbordando dos mais paradoxais sentimentos, uma necessidade catártica foi surgindo naturalmente nele que, através da escrita, colocou-se a desvendar os mistérios daqueles olhares, a tentar identificar nos gestos daquela moça a armadilha que o jogou no covil. No covil dela. Pois agora ele era a presa, abandonada à própria sorte num buraco negro, limoso e frio da sua própria consciência e, para emergir de tal local, necessitava localizar o erro. E assim, as outras continuaram sendo outras, ela virou musa e ele, sem se dar conta, escritor.

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 07/02/2011
Reeditado em 07/02/2011
Código do texto: T2776821
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