A Cruz e o Gato

Com todos os recursos médicos, infelizmente o chorão faleceu às dez horas, na clinica veterinária, em Maricá. Recebi o corpo consternado e o enterrei no quintal, com merecidas honrarias: Era um excelente caçador de ratos. No término das exéquias fiz prece e finquei uma cruz, pedindo a Deus lhe dar um bom descanso.

No domingo, mais confortado, fui visitar os sogros, em Ubatiba.

Entrei, falei com todos e, como de hábito, deitei no sofá, enquanto a esposa interagia com a família.

Com o dia nublado e a suavidade da brisa no rosto, cochilei até ouvir a sogra segredar:

- Aninha... Preciso falar com você.

- Diz mãe.

- Não... Primeiro vê se Paulo tá dormindo.

Ela se aproximou, me ouviu ressonar e se retirou:

- Tá sim mãe... Agora diz o que é?

Elas foram para canto da sala e com o dedo apontado na minha direção, dona Rute sussurrou:

- Aninha... Esse aí não anda bem da cabeça não! Esse negócio de enterrar e colocar cruz pra gato, não é de Deus não!

Minha sogra é do interior, pouco estudo, mas sábia nos conselhos espirituais, herança dos antigos e dos pastores na Rádio:

- Você sabe muito bem que isso não ta na bíblia... Então, Aninha, toma muito cuidado pra não trazer coisa ruim pra casa de vocês!

- Mas mãe, quem falou isso pra senhora?

- Não importa quem falou, só sei que é muito sério esse negócio de colocar cruz pra bicho que não é de Deus.

Meu sogro, um supersticioso nato, só saiu do quarto para justificar seu repúdio:

- Mas ta errado mesmo, Aninha... Se gato não é cristão, como colocar cruz na cova dele?

Aninha ficou assustada, arregalou os olhos, mas tentou me defender:

- Mas pai... Ele amava muito aquele gato, ficou triste e até pediu a Deus pra ele descansar em paz.

Minha esposa, coitada, quis ajudar e só piorou a situação: A mãe ficou mais assombrada, colocou as mãos na cabeça e exclamou:

- Ai meu Deus! Isso é pecado demais... Seu marido vai ter que pedir muito perdão ao senhor Jesus... Onde já se viu pedir pra gato descansar em paz, gente?

No início estava tranquilo, mas a irritação da sogra me incomodou e resolvi roncar.

- Aí aninha... Vou fazer sacrifício no jejum e orar sete dias pra sua casa não ficar mal assombrada.

De repente surge no portão minha cunhada, obreira da igreja do infinito.

- Bença mãe, bença pai... Como ninguém respondeu, de lá mesmo perguntou:

- Que que houve, gente... Que mistério é esse de vocês?

A mãe fez sinal para ela entrar devagarzinho e depois de contar minha iniquidade, ela exclamou:

- Ta amarrado! Isso é obra maligna... Logo gato que deu xixi, quando Jesus pediu água!

Como sempre anda com “kit expulsa demônio”, ela pegou o óleo ungido e lentamente despejou na minha testa. Ao sentir o líquido escorrer, me sacudi e, no susto, atropelaram meu sogro, que voltou mancando ao quarto.

Minha cunhada, sentindo-se vitoriosa, exultava:

- O sangue tem poder! Sabia que o coisa-ruim tava escondido!

Deitada no quarto vendo televisão, dona preguiça gritou:

- Oh vóóó! Para com isso... Gato é de Deus sim! De mais a mais, cada um faz o que quer!.

Dona preguiça é minha enteada, uma adolescente adepta aos “emos” e defensora do livre direito de cada um fazer o gosta. Só que quando faz, apanha.

Sua interferência irritou ainda mais avó, indo até a porta para repreendê-la:

- Cala essa boca Cristiny, você é outra endemoniada que não quer nada com senhor Jesus!

Para por fim ao tumulto, resolvi acordar. Levantei, olhei ao redor e vi todos contidos, tipo velório, olhando para mim. Fingi que espreguiçava e disse:

- Nossa! Tive um sonho estranho...

Minha esposa, toda meiguinha, perguntou:

- Que sonho, amoooor?

- Uma coisa horrível, aninha... Sonhei que levava o chorão pro céu e na porta os crentes faziam passeata e protestavam:

- Aqui gato não entraaaa! Gato não é de Deeeeeuuuuuus!

walter monteiro
Enviado por walter monteiro em 03/02/2011
Código do texto: T2770624
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.