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SALVE IEMANJÁ, RAINHA DAS ÁGUAS


     Hoje, 2 de fevereiro, é dia de festa na Bahia. Dia de Iemanjá, rainha das águas, orixá dos mais respeitados na linhagem do candomblé. No sincretismo religioso, equivale a Nossa Senhora da Conceição, dona da festa mais antiga do Brasil, celebrada em 8 de dezembro, desde 1500.

     Bem cedo os devotos se vestem de branco e demandam a praia do Rio Vermelho para saudar a mãe santa. Levam consigo oferendas de vários tipos que são deixadas nas águas do mar. Como Iemanjá é muito vaidosa, são bem aceitos espelhos, pentes, bijuterias, perfumes e flores, muitas flores. Diz a tradição que a devolução dos objetos para a praia sinaliza que os presentes não foram aceitos pela divindade. Daí o esforço dos fiéis para levá-los mar a dentro, onde as águas são mais fundas.

     Apesar de espiritualista, não professo nenhuma religião em particular. Sou aberto a todos os credos e respeito os seus rituais. Na verdade,  Deus -a inteligência suprema do universo - é o mesmo em todas as latitudes. As formas de cultuá-lo é que diferem. Contudo, é preciso que estejam voltadas para o amor e a compaixão, conforme os preceitos lá do Alto.

     Mas o meu fascínio por Iemanjá vem de longe. Quando criança, impressionavam-me a magia e a beleza daquela figura feminina que eu via estampada na parede da casa de dona Celeste, mãe de um dos meus amigos de infância. Ficava horas esquecido contemplando aquele quadro. 
     
     Já na adolescência, conheci uma velha senhora, Dona Auta, a quem visitava com alguma frequência. Era separada do marido. Imagine naquele tempo, uma senhora idosa quebrar o tabu da separação... Diziam que era uma pessoa geniosa, difícil de se lidar. Se alguém pisasse em seus calos, recebia golpes certeiros de uma bengala que lhe dava apoio. Mas sempre nos dávamos bem. Confiava-me pequenos segredos, seus romances de menina-moça e  até as desavenças com o esposo. Dizia que gostava mesmo era de outra pessoa, tendo sido forçada a casar-se com alguem que não amava. Recordo-me de um detalhe: quando pronunciava o nome do amado, Plínio Moscozo, estalava a língua como se sentisse o gosto de açúcar - splan, splan, splan. Eu sorria com  discrição e ouvia também as canções apaixonadas que ela gostava de cantar. 

     Vez por outra Dona Auta me presenteava com algumas frutas frescas colhidas no quintal da casa - ah, como eram doces as jaboticabas! Até que uma tarde, ao terminar a visita, fui surpreendido com a sua intervenção:
 
     - Volte aqui. Não saia agora não que eu tenho um presentinho pra você.

     Foi lá dentro e voltou com uma pequena pedra ovalada, de cor amarela, parecida com uma gema de ovo.  Estava molhada como se tivesse saído de um aquário. Olhou bem nos meus olhos e disse:

    - Isso aqui é pra você, meu filho. Estou lhe dando a pedra da mãe d'água, a mãe Iemanjá. Ela vai lhe dar proteção pro resto da vida. Você só precisa botar dentro de uma vasilha d'água. Nunca deixe faltar água nessa vasilha.

     Fiquei agradecido e sai com o amuleto.Chegando em casa, guardei-o muito mais como recordação de uma pessoa querida.
 
     Pouco tempo depois a velha nos deixou.

     A pedra ficou exposta na estante. Minha vida prosseguiu com as vicissitudes inerentes a um jovem idealista. Experimentei o cárcere como preso político da ditadura de 1964. Conheci a companheira com quem vivo até hoje e graduei-me em agronomia.
 
     Foi então que, no auge da minha indiferença religiosa, conheci uma baiana mãe de santo no adro da igreja do Bonfim. Eu estava com a minha companheira, quando ela se aproximou, encarando-me com firmeza. Em seguida revelou que eu era filho de Iemanjá e ofertou-me um colar de contas azuis e brancas, as cores dessa orixá. Dizem os iniciados que o nome Iemanjá  é derivado da expressão Iorubá  "Yèyé omo ejá" que significa: "mãe cujos filhos são peixes". Para um pisciano como eu, nada mais coerente. De bom grado aceitei o título e usei o colar azul e branco. Viviamos a era hippie e a minha imagem de cabelos e barba longos teve um complemento à altura.

     Passados tantos anos, o velho aqui continua fascinado pelos encantos de Iemanjá. Rendo-lhe glórias no dia de hoje. Homenageio também dona Celeste, ainda firme lá em Cruz das Almas, na Bahia; Dona Auta que há muito partiu e a baiana anônima de Salvador que me batizou filho de Iemanjá. Peço a Deus que as cubra de bênçãos, bem assim a  todos os homens e mulheres que praticam o bem aqui na terra, independente do culto religioso.

     O papo está bom, mas preciso colocar um ponto final. Agorinha mesmo vou lá dentro conferir se a pedra de Iemanjá está devidamente imersa na água. Limparei o pequeno aquário, porei pétalas de rosas e água de cheiro. Dona Auta, lá de cima, com certeza vai aprovar o meu gesto com um sorriso de felicidade. E mãe Iemanjá então...