Realmente é um caso para Sherlock Holmes. Ele simplesmente evaporou-se, desintegrou-se, desmancou-se sem deixar vestígios. E, por mais que eu tente espremer meu juizo, já um pouco mole,não consigo refazê-lo, por mais que o procure, não consigo encontrá-lo. Como recompor algo que foi construido em séculos? Pois é: Sinto que gastei centenas de anos para compô-lo. E agora, pobre de mim, me vejo sem ele, pequenei, já que um pedaço, acho mesmo o melhor de mim, me foi tirado. Junto com ele foi o que eu tinha de mais poético. Lá estava eu em pedaços. Lá estavam registrados meus melhores e piores momentos, minhas alegrias e tristezas, meus amores e desamores. Página á página o montei, letra á letra, fui me deixando, me abrindo, usando suas páginas como meu refúgio. E fui rabiscando poemas... muitas vezes apenas pedaços, em outras, lá estavam eles inteiros, inéditos, virgens. Durante anos, tive sua companhia. Sempre lá estava ele á vista, como a esperar ser usado. Mas, suas páginas se completaram apesar de serem duzentas. Por vezes, eu o folheava, lia e relia, e, cada vez mais me parecia melhor. Alí estava meu eu inteiro. A melhor fatia de mim. Nada tinha de organizado, ao contrário. Eram pedaços de versos que moravam lado á lado de crônicas, e muitas vezes borrados de lágrimas.
Uma vez apenas o levei á passear. Fomos á praia de Tambaba, onde o fotografei nos rochedos junto ao mar. Essa é a última e única imagem que dele me restou. Lá escreví " Hoje comi um olho". Era sua última página. Fechava-se um ciclo. Poderia dizer que alí era meu celeiro onde hibernavam minhas sementes á espera de germinar um dia, quem sabe, um livro. De tempos em tempos, lá ia eu folheá-lo em busca de inspiração para meus modestos escritos. Lá sorvia meu néctar. E, sempre pensava... Fui eu mesma que escreví tudo isso? E, me encantava comigo mesma. E, me encontrava em minhas letras, outrora tão lindas, tão poéticas. Hoje, sinto que fiquei partida com a partida dele.
Bem, revirei a casa inteira, já fiz promessa para um tal São Longuinho, fiz até catimbó. Já briguei, lutei, chorei, mas ele não apareceu. Num esforço sobre-humano tento reescrevê-lo. Em vão. Aquela que escreveu tudo, já nem mais existe. Os anos borraram o lirismo latente. Ficou essa que faz de conta que escreve, mas que daquela pouco tem. E, o sonho de torná-lo livro, morreu com ele.
Agora fico pensando, se pelo menos ele tivesse se afogado no mar de Tambaba, teria sido bem melhor. Só os peixes seriam meus leitores. Só de imaginar que outros estejam violando meu tesouro, me dói. Dificilmente irão entender tudo que ele representou para mim. Voltar no tempo, tentar esquecer, nada é possível. Aquilo aconteceu naquele momento e aquele momento passou, como eu também.
Só me resta essa saudade doida daquele caderno onde me deixei á mostra, onde me abrí inteira, onde fui eu mesma, sem máscaras, nua e crua.