Meu conto predileto

Recentemente reli minha descrição meio cínica, meio sarcástica e absolutamente irônica de princesas e príncipes (entre outras criaturas dos contos de infância, medo e fadas), constantes no texto 'Arquétipos e estereótipos'; concomitantemente, acontecimentos na vida alheia e particular contribuíram para insistente repensar em 'A Bela e a Fera' – no enredo e nas personagens.

Todos conhecem a estória: uma rosa roubada, o bicho rabugento, uma dívida contraída; uma moça honesta e meiga, um castelo quase deserto, os jardins exuberantes... duas criaturas muito diferentes e a mesma solidão... as contraditórias necessidades, a amizade impensável; a moça parte e demora, o bicho chora; a moça voltando, o bicho morrendo; a dor-amor dele, o amor-dor dela, uma promessa cumprida, o feitiço quebrado... e o encanto real, definitivo. É um belo conto, e trata do sentimento ideal e necessário à libertação dos envolvidos.

Contos de amor me comovem; questões de amor sempre me causaram estranhos efeitos, as respostas sendo mais esdrúxulas ainda (com certeza, começaram a vir à tona num dia de meus doze anos, quando expliquei a um garoto que não o beijaria porque "somos vizinhos, não namorados", mesmo quando eu o achava lindo e beijável).

Necessidades são uma coisa, desejos são outra. Este texto pretende refletir um pouco sobre nossas expectativas quanto aos sentimentos e comportamentos do outro – consequentemente, sobre nossos próprios sentimentos e comportamentos.

Via de regra, as estórias de princesas belas e sofredoras têm final feliz. E a maioria das moças não move uma palha para que assim aconteça; parece que o conto flui e deságua em foz definida por um príncipe, um sapo, um lobo... À parte tranças compridas, cabelos difíceis de cuidar e alguma dor de cabeça, ou ao projeto nojento de beijar um batráquio, ou alguma caminhada pela floresta, que outro esforço (não fisiológico, bem entendido!) se percebe? Apenas esperam, seja dormindo ou beijando...

No texto 'Arquétipos e estereótipos' proponho a transformação de sapos em príncipes – e é enorme o risco do contrário também acontecer. A essa inusitada e hilária ideia subjazem outras, sem graça e velhas como a fome, e que demonstram egoísmo, covardia e mediocridade:

1) minhas necessidades são mais importantes que as do outro;

2) o outro que se adapte a mim;

3) enquanto espero o cara certo, divirto-me com os errados.

Ao que parece, o verbo esperar tem certo peso... e medidas equivocadas.

Esperamos que o sujeito seja educado à mesa e audacioso na cama; queremos que não seja perdulário e nos dê ótimos presentes; apreciamos sua solidariedade e imaginamos se ele ganha bem; desejamos com todas as forças do nosso ser que seja filho de uma senhora boa, feminista e compreensiva e que gere filhos lindos, inteligentes e saudáveis; que não se incomode com celulite e tenha o corpo sarado; que não saia aos domingos para jogar bola – ou sequer goste de futebol; saiba identificar e contornar a TPM (antes, durante e depois) e aceite incondicionalmente nosso apego àquele primo lindo de pecar ou ao pijama puidíssimo para pecar... E, finalmente, precisamos que ele seja indiscutivelmente heterossexual e responda à vizinha gostosona e atirada (ou colega de trabalho, de academia, ou qualquer mulher, enfim!) o mesmo que a autora disse ao amor de sua infância.

Mas o que 'A Bela e a Fera' tem com isso?

Em 'Arquétipos e estereótipos' insinuo a insatisfação das mulheres porque os homens não atendem às expectativas – ou, quando atendem, é por curto período. Mas (isso é transversal ao texto) o atual comportamento feminino busca qualidades masculinas de curto prazo; os hábitos disseminados nessa recente sociedade hedonista cultuam prazeres sem responsabilidades. É um círculo vicioso, ou melhor, uma alegoria em que a raposa come o próprio rabo – que sequer está preso à armadilha, e, portanto, em nada vai ajudar a escapar – e fica para sempre deformada.

Então, o que fazer: esperar, deformar-se ou desistir?

Pelo visto, existe ao menos uma princesa realizada: Bela, a que não esperou, não se deformou e não desistiu. A moça enfrentou uma situação difícil dando o melhor de si e cumprindo seus propósitos – isso requer coragem; mesmo temendo a fera, soube reconhecer e cultivar suas qualidades – isso requer generosidade; permitiu-se ir além das aparências, tanto do outro como de si – isso requer inteligência.

Assim, a questão se transforma: o que temos para oferecer a quem amamos?

Beijos, para descobrir ou para cultivar a essência de cada lábio, de cada um de nós - e porque beijos curam tudo!; um corpo quente e alegre, não volátil; um olhar intenso, verdadeiro de presente e futuro; nossos ideais, nossa ética, nosso amor próprio, nossa dignidade (tudo o que, por um engano torpe, pensamos que perdemos, quando amamos) (E por que, mesmo, pensamos que perdemos, quando amamos?) (Esses parênteses bem dariam outro texto...).

Ah, o velho e espevitado amor e suas questões quase senis! E as respostas, tão lúcidas, tão pouco conhecidas!

Princesas, creio ser hora de parar de beijar obstinadamente - isso é procurar no outro o que não há em nós. Construir um relacionamento baseado em confiança e consideração requer, antes de tudo, respeito e fé em nós mesmas. Isso só se consegue quando o amor é maior que o medo de ser livre.

31 de janeiro de 2011

Morada Nova e Limoeiro do Norte

Ceará

Brasil

Gina Girão
Enviado por Gina Girão em 31/01/2011
Reeditado em 19/07/2012
Código do texto: T2763827
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