PEQUENAS LEMBRANÇAS NA MÊDA
 
 
           Em Março começava a Primavera, os campos se cobriam com seu manto multicor onde o verde sobressaía salpicado pelo branco das marcelas e o vermelho das papoulas.
          Lá para os lados do dom Froio não era diferente, mas o verde das vinhas começava ufano a se sobrepujar em relação a outras nuances de cor. As videiras já haviam brotado e sua rama já alcançava de trinta a cinquenta centímetros para dentro da carreira, o chão começava a ficar coberto de erva daninha que teria que ser erradicada para que não prejudicasse a plantação.
           Em fins de Maio ou princípio de Junho meu pai dava a primeira lavra e quando o dia era determinado, na véspera lá estava ele preparando os apetrechos laborais para que nada desse errado.
          O arado sofria uma total revisão: o tamão era firmemente encunhado na rabiça e esta provida de uma nova relha previamente confeccionada na oficina do Sr. Secundino, as capas das aivecas gastas eram substituídas por capas novas para que melhor pudessem sulcar a terra, a canga com as chavelhas era peça fundamental para tracionar o arado. O albardeiro já tinha feito um enchimento de palha nas moleias, um tipo de almofadas que iam na cernelha dos animais para que pudessem suportar o esforço da canga. O tamoeiro, untado anteriormente com sebo para não ficar quebradiço junto com uma chavelha menor faziam o conjunto de engate canga-tamão.
           Em 1960 não havia tratores na Mêda, por isso os únicos motores propulsores da agricultura eram os animais e meu pai tinha dois belos e possantes representantes da raça muar: o carriço e o castanho, comprados com algum intervalo de tempo na feira de Trancoso, ainda pequenos, para serem domados para o serviço do campo e assim substituírem a preta e a russa, duas jumentas que já não davam conta de arar a terra, pois vinha aumentando de ano para ano.
           Minha mãe levantava às cinco da manhã para fazer o trato porque a robustez e a frugalidade destes animais são colocadas na manjedoura para que assim possam enfrentar dias seguidos de labuta.
               Às sete os animais já estavam com a albarda em cima, respectivamente cilhados, e os atafais bem aprumados em suas ancas, só faltava carregar o arado, a canga, as moleias, o tamoeiro e outros pertences para que pudessem se jungidos à hora que chegassem ao dom Froio.
            Minha mãe carregava uma taleiga com pão, e de peguilho ou algumas sardinhas, ou chouriça, ou presunto ou ainda bacalhau salgado, se tinha uma coisa não tinha outra. Não era hábito comer comida de garfo no campo, se comia a seco mesmo.
           Meu pai pendurava a tiracolo uma angoreta com dois litros de vinho de sua própria fabricação, para na hora do almoço dar duas ou três goladas. No trabalho não gostava de beber, sempre sobrava, mas nos dias de mercado entornava bem.
           Eu tinha 14 anos e há uns dois anos atrás meu pai havia-me segredado que queria que eu estudasse, mas que não se sentia capacitado financeiramente para me mandar para fora e que eu devia ajudá-lo na agricultura e depois se veria.
         Era o que eu estava fazendo nesse momento e junto com meus progenitores, saímos de casa, tomamos a rua do tanque e nos dirigimos até ao fundo da vila para pegar o caminho tortuoso do Moreró e mais um pouco chegar ao prédio. Eram mais ou menos dois quilômetros e meio percorridos. Era fácil. Mais difícil se tornava por altura da colheita da batata quando se tinha que decuplicar essas idas e vindas com quatro sacos de batata rambana no lombo dos animais ou então quando se arava a terra da vinha que era o caso em pauta.  Aí sim, ficávamos extenuados e com o corpo moído quando chegava a noite.
            O meu trabalho era na frente dos animais, dirigindo-os para que não quebrassem os ramos ainda tenros das videiras e pudessem prejudicar a futura colheita das uvas. Meu pai, agarrado à rabiça do arado gritava atrás:- - “olha lá cuidado, não encostes tanto” e eu não descuidando do serviço olhava ladeira acima aqueles tantos hectares a serem amanhados e nem sequer tínhamos começado ainda. Calculo que teremos andado por dia com passo rápido uns trinta quilômetros. Se eu não tivesse os pés chatos tudo bem. Enquanto estava andando nada de dor, mas bastava parar, ficava difícil levantar de tanta dor ao pôr os pés no chão.
           Ali ao lado da corte passava um regato coberto de maruges onde corria uma água gelada que saía do valado. Eu sentava bem ao lado numa pedra feito banco, descalçava as botas, tirava as meias e enfiava os pés na água gelada até quanto pudesse agüentar. Era um amortecedor para a dor que imediatamente por algum tempo parava de doer
           Naquela época era a experiência própria que me levava a entender que a água fria fazia bem para a dor muscular e óssea, hoje a ciência o comprova, não só a água fria como também o gelo.
          A corte era uma construção de pedra, coberta com telha romana, rodeada por um silvado, não tinha janelas, apenas uma porta larga. Era aqui que meu pai guardava lenha e as pessoas se abrigavam do mau tempo no Inverno, mas nesta época do ano o tempo está mais ou menos firme, por isso minha mãe estendia as enxergas bem perto da entrada da corte e dormíamos ali mesmo ao relento, olhando o mais bonito céu que já vi em minha vida.
         Que saudade do caldo de cebola com batata feito em panela de barro e comido em tigelinhas também de barro em volta da fogueira que ao crepitar soltava fagulhas que mais pareciam pirilampos iluminando a noite escura, fazendo inveja ás estrelas cadentes que singravam os céus. E a salada de maruges temperada com o puro azeite, vinagre e sal.
 
Porto Ferreira, SP 17 /01/2011
Luís Filipe Figueiredo da Silva.
 
Luís Filipe Figueiredo da Silva
Enviado por Luís Filipe Figueiredo da Silva em 31/01/2011
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