CAMILLE

A noite de quarta-feira, 5 de janeiro, encerrou-se numa mistura de tristeza e de alegria. Pouco mais de onze horas, meu pai atendeu ao telefone. A entonação de contentamento denunciava: conversava com alguém conhecido. De repente, a suavidade da voz desapareceu. Chamou minha mãe. Preocupado, indaguei-lhe: - Quem era? O que tinha acontecido?

Marinalva comunicava-nos do falecimento de Camille. No primeiro dia de 2011, Camille atravessou uma rua do Rio de Janeiro. A pressa da menina de quase oito anos de idade – estudante do Colégio Imperial Pedro II, que nunca parava de falar e que pressionava minha filha para que pronunciasse “corretamente” a letra “r”, abandonando o sotaque caipira do interior paulista para assimilar a entonação carioca – acabou-se na dianteira da motocicleta.

As imagens do desespero dos familiares – principalmente de Marinalva, avó que exercia o papel de mãe – simplesmente ficam além de minha imaginação. Franzina e esquelética, Camille resistiu no hospital: o impacto da motocicleta destruiu a vitalidade dos órgãos.

Telefonei para Adriana. Anos antes, Marinalva e Camille saíram do Rio para se hospedarem conosco nos quinze dias das férias de julho. Adriana promoveu um jantar delicioso em nossa casa de Paraguaçu Paulista. O cardápio sumiu da memória, exceto a abóbora na moranga – ou qualquer outra coisa na moranga – que minha namorada passou a tarde inteira aprontando e, à noite, ainda ficara longe do ponto ideal.

Naquele mesmo jantar, Camille se encantara com as bonecas de minha filha Natália que, ciumenta e violenta, arrancava-as da carioquinha, argumentando que precisava guardá-las, que Camille iria quebrá-las. A abóbora na moranga não tinha nenhuma importância. O que importava – e o que ainda importa – era o simples gesto de receber bem nossas convidadas. As bonecas tão disputadas de outrora são restos arremessados ao lixo.

A cama vazia, a falta daquele pedaço de gente azucrinando o dia inteiro, a roupa guardada nas gavetas ou nos cabides e que não serão mais usadas, o lugar à mesa, a comida especial, o programa de televisão preferido, a música favorita na rádio FM ou o gesto de carinho são estímulos à tristeza. Entretanto, a tristeza se combate com a alegria. A partida de Camille não é tristeza, mas alegria!

Ainda assinava a coluna “Literatura”, publicada regularmente às quintas-feiras no “Jornal de Assis” (Assis – SP), quando meu pai recebeu o telefonema de uma das filhas de Marinalva: Sr. Cardoso falecera. Sr. Cardoso trabalhara mais de trinta anos como oficial do Corpo de Bombeiros da Paraíba. Aposentado, transferiu-se com a família para o Rio de Janeiro. Gostava de anotar dados, de pesquisar informações, de ler diariamente jornais e, principalmente, gostava de crianças.

Quando estive no Rio de Janeiro no réveillon de 1997/1998, Sr. Cardoso, estava de férias e me recebeu na casa de sua irmã Therezinha, levou-me para conhecer o Maracanã. Detesto futebol, não entendo nada das regras do jogo e não faço idéia de quem são os destaques dos times e da seleção, mas, naquele dia, observando a majestade do edifício, senti-me emocionado e me comprometi, na crônica publicada no “Jornal de Assis” em homenagem ao Sr. Cardoso, a assistir a um jogo no Maracanã. Alegrei-me de saber que compartilhei com Sr. Cardoso momento tão marcante na vida de quem detesta futebol, contudo sabia, desde aquele instante, reconhecer a magnificência do esporte.

Entristeci-me da partida de Camille. Porém, horas depois, comecei muito alegremente a escrever este texto. Muito alegre mesmo! Sabe por que estou muito alegre, Marinalva? Se ela partiu, chegou a algum lugar. Quem parte alcança um destino. E já imagino Sr. Cardoso – sorridente, carinhoso, empolgado, apressado – mostrando os brinquedos, os sorvetes e os cachorros-quentes. À esquerda, sentados embaixo de uma árvore, Sr. João segura copos de Coca-Cola – ou seriam água de coco e caldo de cana? – e Dona Beatriz abre com muito cuidado as caixinhas de chocolate.

Como eu poderia ficar triste sabendo que Camille está entre os que a amam, comendo cachorro-quente e chocolate, bebendo Coca-Cola, correndo para entrar na roda gigante e deixando o sorvete derreter nas mãos de Sr. Cardoso que, sorridente e empolgado, gesticula desconexamente a linguagem do amor supremo?

*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 28 de janeiro de 2011.