Minha casa, minha vida

[Publicada no caderno Mulher Interativa - Jornal Agora/RS]

Feliz mesmo é o eremita! Indivíduo que vaga a esmo, sem lar, sem porto, sem rumo... Ou, em outra perspectiva, que encontra um lar em si e o leva por aí, por onde quer que ande. E anda por onde bem quer. Dono de sua casa, dono de sua vida. Sem vizinhos, nem contas a prestar.

Enquanto ele parte inteiro, nós, indivíduos mais apegados, menos iluminados ou simplesmente mais ocupados com as coisas do mundo do que com as coisas do ser, andamos aqui, a procura de um lugar onde parar... E dar aos outros algumas “satisfações” – mesmo que não se possa, mesmo que não se queira – e pedir deles o mesmo em troca – mesmo que não se deva. São as regras do jogo; é a burocracia da vida.

É preciso seguir o protocolo e ter tudo registrado em papel – documentos, formulários, atestados, certidões. É preciso ser feito de papel e saber bem onde pousar o seu! Vez ou outra é preciso contar ainda com o auxílio de um papel alheio para atestar a legitimidade do seu! Testemunhas, fiadores... papéis que se vinculam, que se confiam e que se confirmar valorosos sempre que é preciso transitar pela “vida de papel” – aquela que prova quem somos, onde estamos e com quem.

Casar, comprar, morar, mudar! Seja de casa, seja de vida: não bastasse a dificuldade de tomar tais decisões – sozinho – ¬ é preciso, inevitavelmente, contar com a participação de outrem para oficializá-las. Só uma vez ultrapassada a enorme barreira de papel, é que se pode ter, de fato, uma “vida legal”. E quando se chega nesse ponto do caminho – por onde, provavelmente, o eremita passa batido – é preciso forçar as pernas para seguir andando e levar consigo atrelado o peso das decisões a longo prazo – aquelas que precisam existir no papel: casamentos, rebentos, financiamentos... Coisas feitas no “pra sempre” que sempre custam e assustam demais!

Pra sempre... Uma vida inteira andando, criando coisas, filhos, buscando... e quanto mais se vai encontrando, maior se torna a necessidade de ter um local para chamar de seu – para determinar as regras e reescrevê-las sempre que der na veneta! Para encher de coisas e gentes e memórias. Para ficar vazio. Um local onde tenhamos segurança, conforto e satisfação: pré-requisitos indispensáveis, mas que nem sempre se pode manter. E preciso aprender as incoerências da vida real: é preciso dispensar o indispensável, evitar o inevitável e alcançar o inalcançável... A todo o momento. E sem esmorecer!

A começar pelo corpo: a primeira e mais importante morada do ser. Além de requerer manutenção constante - e a um alto custo! – ele nem sempre oferece as “mordomias” que se espera de um local onde pretendemos ficar por um longo tempo. Avaliemos os itens:

Segurança: é difícil varrer o medo incrustado nas frestas!

Conforto: alfinetes e pedregulhos têm o péssimo hábito de estar exatamente onde não deviam!

Satisfação: bom [se for ótimo, melhor!], infelizmente, sempre há um espaço vago esperando por algo que não se tem.

E se nem o corpo nos oferece as três necessidades básicas do morar, onde vamos viver?

Vivemos em espaços – divididos, apertados, destruídos, reformados. Vivemos em cavernas modernas – algumas mais caras, mas claras, mais belas, mas, ainda assim, cavernas – onde juntamos tesouros que jamais poderemos carregar... Onde julgamos guardarmos a nós mesmos, do lado de fora do corpo, do lado de dentro da casa.

Mas e se a casa cai? E se a água inunda? E se o vento leva... tudo? Aí, então, saberemos que nada importa. E que ter um nada a carregar pesa mais que tudo! E que o único tudo que de fato importa é aquele que cabe num cantinho, escondido, dentro de nós.

É esse o tudo que o eremita leva, leve.