Ou toca, ou não toca

Suponho que me entender não é uma questão de inteligência e sim de sentir, de entrar em contato… Ou toca, ou não toca.” Clarice Lispector (1920-1977) – escritora brasileira.

Aconteceu algo de diferente em minha vida, não sei explicar ao certo porque as palavras não me bastam e o sentido delas dependerá muito daquele que ler este texto. Talvez seja isto o que mais aflige um escritor ou um poeta, acho que deve afligir mais o poeta, os poetas fazem amor com as palavras… Nunca sabemos o quanto nossas palavras tocam os leitores, nunca sabemos se a mensagem foi passada, se foi entendida e assimilada.

Mas como leitor, não sei se um bom leitor, sempre tentei aproximar-me dos escritores e poetas que, não sei porquê, tinha mais intimidade. O poeta gaúcho Mario Quintana em carta a um jovem poeta já dizia que nos aproximamos dos nossos poetas irmãos. Por algum motivo lemos determinado escritor, mas não conseguimos ler outro, ou até conseguimos lê-lo, mas não como o mesmo prazer. Para Quintana os poetas e escritores têm simpatia por aqueles que fazem parte de sua mesma árvore genealógica.

Ainda pensando no que Quintana escreveu, leio escritores antigos que a poeira do Tempo ainda não conseguiu cobrir com certo prazer às vezes muito maior do que se tivesse lido os que ainda estão vivos.

Entretanto, só para exemplificar, leio um livro que amigo me recomendo por ter gostado muito e não consigo achar o que o atraiu para tal leitura, mas devo confessar que a recíproca é verdadeira.

Exemplificando novamente, pego um livro que o mundo inteiro fala que é bom, daqueles livros recomendados para todos, mas não consigo passar das primeiras páginas.

Não culpo o escritor ou o poeta por isso, sempre digo para mim mesmo que ainda não estava maduro o possível para tal leitura.

Aqueles que não gostam de ler devem já estar falando: Ah, ele confessou que também sente dificuldade para ler determinado livro! Confessei sim. Sinto dificuldade em ler, e não é só o escritor de alto nível: Victor Hugo, Edgar Allan Poe, Balzac ou Flaubert. Também sinto essa dificuldade ao ler nossos contemporâneos. Em compensação, leio Machado de Assis e me divirto muito, leio Shakespeare fascinado e imaginando cada cena, rolo de rir com os pequenos textos Mark Twain no ‘Dicas úteis para uma vida fútil – Um manual para maldita raça humana’ e me compadeço pelos meus semelhantes após uma pequena leitura de Dostoievski ou Tolstoi.

Penso que isso aconteça com todo mundo. Pelo menos deveria ser. Havia citado anteriormente Mario Quintana, ele é um dos meus poetas preferidos, e Quintana, nas palavras de Ernani Só, não foi simplesmente um poeta, mas poeta adjetivado: grande, delicioso. E digo mais: dos poucos que, além de admiração, causam amor. Sempre sou levado para uma esfera surrealista quando leio Mario Quintana, não sei o porquê, talvez ele seja um dos meus irmãos… E há outros irmãos que de quando em vez acabo visitando nas horas vagas, a vida está muito corrida ultimamente. Conquanto me acostumei a visitar Carlos Drummond Andrade, Manuel Bandeira, Florbela Espanca, Baudelaire, São João da Cruz, Cruz e Sousa, Cecília Meireles, etecétera e etecétera. Ah, esses meus velhos amigos que tem o poder de causar amor, quem me dera um dia ser um desses poetas!

Esta mágica que as palavras têm em fazer com que seu leitor seja transportado para um local distante eu senti, ainda jovem, ao ler ‘Caçadas de Pedrinho’ de Monteiro Lobato. Eu era o Pedrinho, eu caçava saci!!! Mais tarde fui sentir algo semelhante ao ler a obra de Cecília Meireles, sentia aquela mesma solidão, meus olhos viam o efêmero e o precário em tudo e meus escritos dessa época, por causa da leitura dos livros da poeta, estão cheios de suas palavras preferidas, e que depois elas se tornaram minhas também.

Esse é o encanto que as palavras nos trazem, e algumas têm o poder de nos salvar, isso no caso do leitor. Já os poetas, como citei no começo, fazem amor com elas… Fazem amor com as palavras preferidas de seu repertório, ou as exóticas pelo seu encanto misterioso e com as novas que vamos descobrindo lentamente seu significado.

E, ainda nisso, posso citar novamente Clarice Lispector porque o problema está no sentir em tocar, o problema do que escrevemos, pintamos, cantamos, compomos está resumido num pequeno porém: ou ele (o trabalho) toca ou não toca, é só uma questão de sentir, de tato. E só no momento em que sentimos é que sabemos que tal trabalho nos salvou.

Bem. Essa foi sempre a impressão que sinto com o que leio, com o que escrevo é sempre a experiência da criação, do manejo com as palavras para passar uma mensagem, para imortalizar um momento, para poder visitá-lo novamente todas as vezes que releio um dos meus escritos como que recorda de um sentimento. Nesses casos ao ler um dos meus escritos da adolescência posso sentir como amava e como esse sentimento é tão diferente de hoje, mais calejado, talvez mais maduro ou experiente… Digo talvez, pois sempre se ama pela primeira vez…

Mas nunca havia sentido a reação direta do leitor, como ele se porta perante a algo que havia escrito, pelo menos dito pessoalmente. Sempre há aquela barreira entre leitor e escritor, quem sabe fina membrana ou ponte intransponível que só é rasgada ou transposta quando se entra em contato. Se não me engano era Carlos Drummond Andrade que dizia “que a palavra é metade de quem lê e metade de quem escreve”, nesse caso fica difícil saber se o que compomos foi entendido, temos apenas uma pequena noção, conquanto se isso aflige os grandes escritores que o diga nós, reles mortais.

Claro que temos o contato com nossos amigos que falam que leram o que escrevemos, seja no jornal ou em blogs, mas como sempre digo aos meus amigos para que eu desça ou não me coloquem em pedestal: Não leiam o que eu escrevo, é porcaria. Digo isso, mas tenho a completa consciência de que quem escreve quer ser lido e compreendido. Há também as notícias que chegam de parentes que falam que um amigo deles havia lido o que escrevi no jornal, e-mails que chegam respondendo algo, recados no Orkut; há alguns dias uma amiga da minha avó ligou em casa e conversou com minha mãe a respeito de algo que escrevi. Até algum tempo eu me revestia de um muro de concreto, talvez para me preservar, igual a quem quer ser duas pessoas, sempre preferi que o meu eu escritor fosse dissociado do eu real, mesmo sabendo que os dois são um só, como quem quer se esconder, fazer com que os outros não saibam quem é que escreve tais textos.

Mas já vivi alguns fatos até engraçadinhos, um dia indo comprar revistas na banca, vi duas pessoas conversando e lendo o jornal, e não é que estavam falando sobre o que eu havia escrito, ouvi isso sem me manifestar só para ver se haviam críticas ou, na pior das hipóteses, elogios (fujo sempre de elogios), comprei minha revista e voltei para casa. Outra foi ao abrir uma conta numa loja e ao preencher o cadastro tive que falar meu nome e ao falar o primeiro a atendente tratou logo de falar o restante como quem faz uma brincadeira, mas para o espanto dela acabei confirmando. Ela começou a falar, falar e eu fiquei encabulado – querendo me esconder em algum refúgio dentro da minha timidez. Bem, terminei de preencher a ficha e sai da loja com o que havia comprado. Como havia dito não consigo associar o escritor, nem o artista-plástico com o eu normal que vive sua vida, que estuda e trabalha normalmente como todo mortal. Prefiro que os outros eus apareçam enquanto o criador fique à salvo: Podem falar que é um sinal de loucura, também acho.

Passei por estes acontecimentos até poucos dias quando uma senhorinha veio até o lugar onde trabalho para falar de um certo ‘Soneto à Florbela Espanca’ que havia publicado. Estava saindo para o almoço quando um dos meus companheiros de trabalho interrompe o que estava fazendo para dizer que havia alguém querendo falar comigo. Pensei que fosse um conhecido, mas eis que surge aquela senhorinha que me cumprimento e perguntou meu nome e começou a falar sobre o tal soneto, disse-me que havia lido Florbela Espanca em sua juventude nas cartilhas escolares e que os versos da poetisa portuguesa a marcaram muito, mas que depois disso nunca mais havia ouvido ou lido falar sobre a poetisa que havia lido ainda jovem, e comentou como que alguém tão jovem (nem tão jovem assim!) havia de ler uma poeta da década de vinte… Após isso acabei despencando, por dentro, de onde me encontrava, senti que poderia tocar quem me lê.

O que havia escrito fez com que aquela senhorinha lembrasse de seus tempos de escola, fez com que ela voltasse à juventude e se lembrasse de algo que a fez se sentir bem. Acabei com isso tocando alguém fora do meu círculo de amizades, toquei alguém que até então não conhecia e que se manifestou. Não estou querendo com isso excluir as outras pessoas que comentam e que mandam recados, e-mails ou os amigos que dão suas opiniões e trazem as tão bem-vindas críticas, mas é que o fato ocorrido me fez pensar melhor sobre minhas responsabilidades como “artista”. Coloco a palavra artista entre aspas por não saber se ainda tenho o direito de usá-la.

Mas, de agora em diante, olharei com mais cuidado e carinho para com o que escrevo, pois, como havia dito, as palavras tem o poder de nos salvar, mas também podem nos levar à perdição. Se agora estou a pensar em frente ao computador, apagando e digitando, querendo compor algo agradável e legível, penso que para alguns isso tenha importância, para outros nenhuma, e para mim, reles “juntador” de letrinhas que olha para a janela do quarto e tenta buscar um pensamento numa nuvem distante, apenas este pensamento: Ainda é possível alcançar a Poesia…

Agosto de 2007

Fagner Roberto Sitta da Silva
Enviado por Fagner Roberto Sitta da Silva em 30/01/2011
Código do texto: T2761178
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