Os meus abolicionistas
Às vezes, sinto que transbordo e que minhas margens ficam inundadas.
Este sentir exige uma escrita incomum, que não pode se conformar com as leis da gramática. Como dar curso a esse sentimento com palavras?
Que sentimento é esse? Sei agora que os psicólogos humanistas chamaram essa emoção de sentimento oceânico.
Realmente, meramente por coincidência, essa minha sensação de transbordamento e essa inundação nas margens só pode se comparar a um Oceano. E eu já completaria: Oceano Pacífico, que não tem nada de pacífico, pois é, talvez, o mais violento dos mares. Muito parecido com a violência do meu sentimento transbordante e que não sei para onde me leva.
Não tivesse lido o psicólogo Maslow, jamais poria no papel esse sentimento, por temor de ser chamado de desvairado, ou qualquer outro adjetivo nesta linha de pensamento. Imaginava que isso só seria permitido aos poetas, quando muito! Maslow, no fim de sua vida, escreveu: “ Você é apunhalado por coisas, por flores e por bebês, por todas as coisas que são belas - o próprio ato de viver, de caminhar e respirar, de comer e ter amigos, e conversar. Tudo tem um aspecto mais belo e não menos, e contrai-se uma sensação imensamente intensificada de que acontecem milagres... Maslow foi um abolicionista nesta área, liberou esse sentimento de vergonha que me afligia.
Na terapia psicológica, Aarão Beck, ainda vivo, foi outro liberador. Liberou seus clientes de suas culpas passadas. Sem dúvida, podemos continuar a viver, apesar de nossos erros. Outro abolicionista, sem dúvida.
Até o grande poeta português Fernando Pessoa, nunca esquecido, foi um libertador. Ele diz, com todas as letras, pela boca de seu heterônimo Bernardo Soares, que obedece à gramática quem não sabe pensar o que sente.
E o nosso poeta, galhofeiramente, nos diz o seguinte: “ Suponhamos que vejo diante de nós uma rapariga de modos masculinos. Um ente humano vulgar dirá dela, “aquela rapariga parece um rapaz”. Um outro ente humano, já mais próximo da consciência de que falar é dizer, dirá dela, “Aquela rapariga é um rapaz”. Outro ainda, igualmente consciente dos deveres da expressão, mas mais animado do afeto pela concisão, que é a luxuria do pensamento, dirá dela, “Aquele rapaz”. Eu direi, “Aquela rapaz”, violando a mais elementar das regras da gramática. E terei dito bem; terei falado em absoluto, fotograficamente, fora da chateza, da norma, e da quotidianidade. Não terei falado: terei dito.”
Pois é, meus amigos, pra encurtar a conversa: precisamos de libertadores para que a humanidade avance. Outro dia li no jornal que o Senador Cristovão Buarque, homem de bem, apesar de político, defende a tese de que devemos abolir de vez com a pobreza, ao ver dele, uma chaga tão vergonhosa quanto foi a escravidão. Outro exemplo de um libertador.
Animado pela audácia desses libertadores, um dia ainda tomo coragem e proponho que alguém mostre para a sociedade que o sistema carcerário que aí está não resolve nem um milímetro a questão criminal e que talvez haja outros caminhos mais inteligentes para a solução deste grave problema.
Enquanto isso, sem pândega, debato-me com o meu sentimento oceânico, quase me afogando, por ainda não saber pensar o que sinto.