Morte. Ressurreição. Vida

1. Morte

27/01/2011 - Hora aproximada: 12:25h - Avenida Brigadeiro Luis Antônio e adjacências

Minha vida, na atual conjuntura, não parece ser nada além de uma sucessão de pequenos fracassos, omissões e decisões erradas.

Há pouco dei um mergulho tão profundo em mim mesmo que me afoguei em tamanha escuridão. Emergi, fui trazido à tona com um ganido e com uma sensação de inutilidade e impotência perpétuas que me observei nitidamente colocando o cano de uma arma na têmpora e puxando o gatilho. Quando dei por mim estava sendo achacado por um segurança de uma espécie de colégio o qual eu estava sentado num canteiro proibido. Foi aí que senti que lágrimas da mais pura angustia escorriam pelo meu rosto.

Não sei verbalizar a abstração dos pensamentos que me acometeram antes, durante e depois de perceber as lágrimas. Por mais que eu tentasse inúmeros subterfúgios para a minha agonia existencial - puxando da memória momentos felizes e até idealizando um almoço na Liberdade - nada deu certo. Foi tudo em vão. Como tudo normalmente é.

Eu odeio isso, cara! Eu odeio isso mais do que qualquer coisa nessa vida. Eu odeio perder o foco, as energias e o sentido das coisas. Eu odeio ter que pensar que o único objetivo da vida é a morte e me sentir impelido a cumprir essa porra de objetivo logo - e à minha maneira.

A coisa veio bem mais forte do que eu, desta vez.

E o que é pior: veio em público. Não que eu tenha vergonha de lágrimas e/ou do meu sofrimento mesquinho, mas o olhar das pessoas me desespera mais! Não quero ser o alvo de suas conjeturações, de suas interpelações, de sua curiosidade e/ou de sua piedade.

Entrei na primeira rua à minha direita e segui evitando os olhares dirigidos à mim.

Caminhava numa rua horrível: arborizada, silenciosa. Casas suntuosas escondidas por trás dos muros altos - apenas parte de seus telhados brancos à mostra - e carros e mais carros estacionados nas calçadas. Tive um acesso de soluços e outro mal-estar.

Sentei numa calçada à sombra.

Escrever. Escrever. Escrever.

Eu TENHO que escrever AGORA antes que surte!

Comecei a escrever no celular mas logo chegou um segurança patrimonial pra me questionar. Questionar o estranho que estava ameaçando os nobres moradores da nobre alameda, tendo como arma um celular e a droga de um nó atado na garganta. Pois está aqui, Sr. Protetor, a munição da minha arma. À queima-roupa.

Mas ele só estava fazendo o trabalho dele e até iniciamos um diálogo amigável antes que eu me levantasse e seguisse meu caminho por aquelas ruas desconhecidas.

Dobrei à esquerda e parei novamente e redigi no celular:

"Aparento não ser muito apto nesse negócio que eu não escolhi ter que costumam chamar de vida. Parece que me identifico mais com a morte. E, quanto a isso, eu pareço ter uma certa opção"

"Essa angústia que eu sinto é a própria corda no pescoço: impede que eu respire; impede que eu veja o que está à minha frente e seu laço está tão bem atado que ninguém pode tirá-lo. Estou morto em vida. Atado a ela por algum capricho ainda inexplicável. E isso é horrível ao ponto da cogitação de meter uma bala na cabeça soar como um lenitivo"

Sol escaldante. Ruas vazias. Alguma peça do quebra-cabeça faltando. Do quebra-cabeça da minha existência.

Entro no Parque e caminho no meio das árvores, pisando em folhas secas. Em folhas mortas.

Encho minha garrafa com água e tento ajudar um moleque que rasgou a panturrilha no pedal da bicicleta.

Volto para as árvores, tiro a camiseta, forro o solo com ela e sento em cima.

Abro o caderno de anotações e começo.

27/01/2011 - 13:04h - Parque do Ibirapuera

2. Ressurreição

Hora: 13:43h. Sinto-me melhor, um pouco melhor, mais leve... Estou em frente ao lago principal do Parque do Ibirapuera. O céu está bem azul e só tem nuvens ali no horizonte, lá pros lados dos prédios da Avenida Paulista. A água do lago cintila refletindo a luz do sol e há uma brisa bem suave, agora, que forma marolinhas e faz com que as folhas das árvores as quais estou sob farfalhem de uma forma que me agrada os ouvidos.

Há alguns espaços na folha do caderno com a coloração amarelada da luz do sol que mergulha entre as folhas, também deixando a sombra delas sobre essas palavras que escrevo.

Acabaram de passar três barbies pedalando suas bikes rosas e de aspecto caro. Tenho fome. Pararam na beira do lago para fotografar as águas dançantes que acabaram de ser ligadas. Penso que transar com alguma delas (ou com ambas) me deixaria um pouco melhor. Tem uma outra que já passou na minha frente correndo por duas vezes. Loirinha queimada de sol com os pêlos das pernas descoloridos que está usando um shortinho minúsculo que deixa à mostra a polpa da bunda. Da próxima vez que ela passar por aqui vou colocar o pé na frente e perguntar o que ela pensa sobre suicídio. Claro que ela vai arregalar os olhos e perguntar o porquê da minha pergunta. Já tenho até a resposta em mente: vou falar que sou um escritor brasileiro internacionalmente renomado que dentro de seu próprio país vive no ostracismo e que a editora de um Sheik do petróleo me pagou um milhão de dólares para escrever sua biografia há mais de dois anos e eu sequer havia escrito dois parágrafos e estava nos últimos reais do milhão de dólares. "E se é uma biografia e a pessoa que a encomendou está viva, por que você quer saber sobre suicídio? Parece não ter muito a ver com o contexto do livro...", ela diria, com as mãos na cintura, respirando forte e com gotículas de suor salgadinho no buço. E eu responderia "bem, mas estamos falando aqui de suicídio, certo? Certo, do suicídio do autor, não do biografado". Ela acharia isso engraçado e sentaríamos pra conversar e não, não daria certo. Não nesta vida. Não com essa cara, com essa roupa. Calça e sapato social e sem camiseta com uma tatuagem no peito, olheiras fundas, um cabelo desgrenhado e olhos provavelmente vermelhos.

Agora a fome apertou de verdade. As barbies estão voltando. Parecem deusas. Devem se sentir como tal.

3. Vida

Depois que olhei bem cada uma daquela Divina Trindade, fechei o caderno, guardei na mochila, levantei, estralei as costas, as pernas e os dedos, coloquei a camiseta, peguei a mochila e fui indo em direção ao portão de saída que é de cara com o Monumento às Bandeiras.

27/01/2011 - 14:07h - Odisséia.

No instante em que levantei, percebi que um velho negro de camiseta verde e cabelos brancos que passou me olhando estava imediatamente atrás do lugar que eu estava sentado enquanto escrevia. Fiz uma busca no local procurando algum casal. Já não é de hoje que eu tenho desejo de esfaquear os voyeurs que ficam rondando o Parque. Mas não tinha casal algum perto. Em numa linha paralela de árvores, em direção ao portão, tinha um outro velho. Quando tomei consciência da existência desse último - que na mesma hora acenou pro cabelo-branco-camisa-verde -, olhei para trás e vi que o primeiro começou a andar na minha direção. Já aconteceu coisa parecida comigo numa outra ocasião e eu ainda tento entender qual é a intenção disso. Não esperei pra saber e caí fora, tremendo de fome.

O termômetro que fica no cruzamento das Avenidas Brigadeiro Luís Antônio e Pedro Álvares Cabral marcava a temperatura de 36°C. Apesar do calor, custei a acreditar que a temperatura estivesse tão elevada conforme o termômetro. O que senti ser uma vantagem pra mim. Só não sei o porquê. Fiquei lá, esperando a primeira série de três semáforos para atravessar. Um ronco de motor familiar e peculiar começou a roubar a cena. Preparei-me pra ver uma Ferrari, só pra variar. Era um outro carro. Um tal de Lótus - vi o nome na traseira. Atravessei a rua e fui até o ponto. Dei uma olhada num canteiro onde chafurdei o pé numa outra ocasião, e me senti um cara de sorte de só ter sujado toda a entresola do pé esquerdo do meu tênis novo, pois havia um grande pedaço de lama de aspecto pegajoso, como se fosse um monte de brigadeiro - ou bosta. Eu poderia ter afundado os dois pés ali e escorregado e tudo o mais.

Entrei no ônibus pro Terminal Parque Dom Pedro II. Se do lado de fora estava 36°C, dentro do ônibus chegava fácil aos 45°C. Aquela atmosfera úmida, grudenta. Aquele ar pesado. Gente com a testa brilhando e pingando suor. Usando jornais, revistas, panfletos e as próprias mãos como leque. Tive um pequeno acesso de mau humor e me senti bem por isso. Estava saindo da badzinha de fresco.

Estava na dúvida se tinha saldo suficiente ou não no Bilhete Único. Meus planos: descer na Sé e almoçar na Liberdade. Depois, pegar o ônibus pra casa, passar no mercado e pegar duas verdinhas - com os últimos R$4,00 que eu tinha na carteira - pra ver se a coisa melhorava um pouco. Se eu não tivesse saldo no Bilhete, pagaria a droga do ônibus com o dinheiro e teria que dar uma passada básica e irritante no banco.

Tinha saldo e eu passei feliz e sorridente.

Mas meu sorriso não durou por muito tempo. A bateria do MP4 acabou e eu tive que me acostumar a conviver com som dos outros. Na parte da frente do ônibus tinha um moleque que não calava a boca por um minuto sequer. Onde eu estava encostado tinha um outro que ficava fazendo perguntas e mais perguntas pra mamãe dele. E o interior do ônibus, quente. E o trânsito, parado. Já não tem mais hora pra ter trânsito nessa "cidade das oportunidades". Já lá em cima na Brigadeiro, faltando umas duas quadras pra chegar na Paulista, o ônibus morre. Fiquei olhando a fileira de carros lá atrás. Começaram as buzinas. O ônibus pegou com certa dificuldade e seguiu seu caminho. Desceu uma galera no ponto da Paulista e eu consegui me sentar. O moleque lá da frente não parava de falar com sua voz de gralha pederasta. Quando entra uma belezinha. Outra loirinha. Magrinha, baixinha, com seios bastante enormes para sua compleição física. Um piercingzinho no narizinho e um ar de menina indefesa que me encantou. Mas logo que vi o tamanho da aliança de casada apaguei o abajur da babaquice quimérica e voltei à realidade.

Então, o ônibus quebrou.

Foi muito de repente. Parou num ponto qualquer e começou a não querer andar e a soltar uma fumaça preta e fedorenta e todos tivemos que descer. Uma nova pontada de mau humor.

Entramos em outro ônibus que estava logo atrás e já estava um pouco apinhado. Com a galera do ônibus quebrado entrando, fodeu tudo de vez. Entre cotoveladas e enroscadas de bolsa, consegui ficar isolado num canto bacana. Essa minha satisfação durou cinco segundos. O pivete matraca estava na minha frente e continuava falando. O outro, que estava com a mãe (e que parecia o Chris daquele seriado "Todo Mundo Odeia o Chris"), estava ao lado com a maior cara de tédio de todas.

- Quantos anos você tem? - perguntou o falastrão-mirim.

O outro olhou pra cara dele por alguns minutos e depois olhou pra rua. Era dos meus!

Mas o filho de uma putinha não parava de falar e o trânsito não parava de ficar parado. Minha camiseta suada. Minha testa suada. Minha paciência daquele jeito.

- Sabia que no ano passado a noita mais baixa que eu tirei foi sete? A minha aula preferida na escola é educação física, e a sua? - Chris olha com sua cara de tédio e fica quieto - Você sabe falar inglês? Eu sei. O que é que você come que é pão com salsicha e outras coisas? Eu moro aqui na Sé, e você? Caramba, esse ônibus não anda, acho que vou à pé... Eu tenho dez anos e já consegui pegar quinze quilos, sabia?

"É", pensei com meus botões, "ano que vem ele descobre o que é bater punheta e pára de ser chato".

Desci na Sé e tomei um vento refrescante no rosto logo de cara. O que provavelmente acarretaria no meu nariz escorrendo, porque é assim: se eu tomo qualquer ventinho com o corpo quente, já era. Naquela pracinha adjacente ao Palácio da Justiça tinha uma galera deitada no chão quente dormindo ou relaxando. Dois rapazes limpos e com cara de novos no pedaço deitavam no chão, também. A Terra das Oportunidades. Outros comiam usando as mãos. Dei de ombros. Se não fosse a gentileza da mamãe de me emprestar seu vale refeição eu não estaria indo comer na clássica churrascaria da Rua da Glória.

Entrei lá e estava um pouco cheio. Não tanto, mas quando apareço por lá com os amigos há meia dúzia de cabeças de orientais hostis comendo infinitamente. Fui bem recebido como sempre, sendo chamado de "patrão" e tudo, e, comi como se não houvesse amanhã, como sempre. Desta vez, optei por ficar de costas pra rua. As japinhas que ficam desfilando na rua não me deixam mastigar trinta e duas vezes cada garfada que eu jogo pra dentro da boca e eu queria ter uma boa digestão, depois. Em contrapartida, fiquei em frente ao telão, assistindo aquela cara de cachorro que caiu da mudança do Murilo Benício naquela novela de mil anos atrás que não valia a pena ser assistida na época e valia menos a pena ser vista de novo. Concentrei-me naquelas paisagens do Afeganistão/Cazaquistão/Seiláoquêquistão pois a mulher do gerente estava lá, atuando como caixa. Ela sabia que era uma gostosa e sabia que eu pensava a mesma coisa e parecia gostar disso. Provavelmente coisa da minha imaginação, mas eu tentei manter o respeito. Satisfeito, levantei e fui passar o cartão da mamãe. Não tirei os olhos das unhas vermelhas dela. Saí.

(Decidi não me aprofundar muito na loira das pernas grossas e cabeludas que estava com um rapagão com cara de michê e na loira de pernas grossas que não tinha bunda e tinha cara de piranha que almoçava com a família e nem do velho decrépito dos cabelos brancos e pele vermelha feito pimentão que mandava ver na cerveja em pleno horário comercial)

Saí tomando um cafézinho e entrei na Tabatinguera. Era a rua que a lunática que conheci certa vez morava com meia dúzia de gays. Até pensei em dar uma passada na loja que ela trabalhava só pra ver as promoções e dar um oi mas decidi que era melhor não. Não sei que tipo de mágoa ela guarda de mim. Custava comprar um cartão e me ligar? Preferia ficar ligando do celular DDD 16 do namorado do tio baitola. Á cobrar. Quando cortei essa regalia, ela não ligou mais. Que se lascasse.

Outro farol. Atravessei, já indo direção à outro. Calor. Então, minha caneta cai. Volto e coloco no bolso. Ainda tinha um pouco de chiclete colado nela. Parei na ponta da faixa e o farol estava fechado. Fui andando e vendo que, paralelo à faixa, os motoqueiros dominavam a primeira fila. No meio do percurso, ao pensar nisso, eles começaram a acelerar. O farol estava no verde.

Foi tudo muito rápido. Não deu muito tempo de pensar e achei até engraçada a minha má sorte. Eles também estavam achando graça pois ninguém fez a menor menção de frear aquelas merdas e eu tive que ser ninja e ficar desviando de uma, recuando, avançando e, por fim, chegando na outra calçada são e salvo. Eu dava risada de alguma coisa. Depois fiquei irritado e minhas pernas ficaram meio moles e o coração começou a bater forte. Eu facilmente poderia ter sido atropelado. Dei risada da ironia da coisa toda, pois há poucas horas antes eu estava tão-somente pensando na morte que tinha esquecido o que é viver.

E é estranho o modo como eu não sou atropelado. Já tive várias oportunidades de tal acidente acontecer e saí ileso sem explicação alguma. E acho que isso é o mais próximo que eu chego de acreditar em coisas do Além que me protegem ou numa espécie de destino.

Continuando.

Descendo a Anita Garibaldi vi algo me despertou as mais variadas emoções: um homem lá pela casa dos quarenta e poucos em pé sob aquele calor de matar camelo esperando clientes. Ele vendia umas carteiras de plástico (não sei o nome específico), de guardar documento. A capa daquilo me lembrou a da Carteira de Trabalho. Uma frase na capa se destacou: QUEM TRABALHA TEM RIQUEZA.

Olhei aquele homem ali, parado, vendendo coisas que só mesmo um desocupado observador como eu se dá conta. Suas roupas sujas, humildes, aquele sol desgraçado. Era um trabalho. Cadê a riqueza?

A Terra das Oportunidades.

Eu tinha ido à uma palestra pela manhã, nos Jardins, que era a segunda fase de um processo seletivo que teve início no dia anterior e que eu fora aprovado. Já fiz inúmeras entrevistas e naquelas as quais eu mais me senti apto para a vaga e forte candidato e etc, não fui aprovado. Já vi gente gaga de nervosismo se dar bem em dinâmicas e entrevistas. Já vi gente falando "nóis vai" em entrevista em que fiquei pra trás. Foge da minha compreensão o que esses selecionadores de RH querem dos candidatos e, sempre que tenho alguma parada do tipo pra fazer, eu fico me perguntando se deixo a coisa fluir ou se fico ensaiando falas automáticas de puxa-saco da pretensa empresa pra agradar o leão-de-chácara que fica do outro lado da mesa me avaliando.

Nesta dinâmica, em particular, durante um processo que durou cerca de duas horas, se eu falei por dois minutos no total, foi muito. No entanto, fui aprovado. Aprovado entre uma ex-comentarista deusa de programa renomado de futebol; entre uma arquiteta e entre um cara que estuda na USP desde 1977, formado em admnistração, psicologia, blábláblá, blábláblá. Foi uma coisa de outro nível em que por mais que algo na minha mente falasse "FICA DESLOCADO", eu não fiquei. Fui absorvendo tudo o que aquelas pessoas de cultura e conhecimento elevado tinham pra oferecer e fiquei na minha. E lá estava eu, entre alguns deles, no dia seguinte.

O edifício impressiona logo de cara: fontes na frente, carros de luxo entrando no estacionamento, portas automáticas, ar condicionado geladinho, seguranças com cara de quem dá o rim pela empresa e recepcionistas mal comidas - nem tudo é perfeito. Um elevador com vista pra rua. Era no segundo andar, a coisa toda. Tinha biscoitinho, cafézinho, cházinho, banheiro chique, chão amadeirado lustroso, portas de madeira imponentes com senha de acesso. Essas coisas de filme de ação.

Bem, o ganho prometido pela empresa era exorbitante. Trabalhar autônomo, em cima da comissão, essas coisas. Só que a coisa não era tão fácil assim. Não haveria ajuda de custo pra transporte e alimentação. O registro no Conselho Regional custava o olho da cara. As sedes da empresa ficam nos bairros mais nobres - e longínquos do meu cafofo, logicamente - da cidade. O carro seria uma ótima mão na massa. A ex-comentarista e uma publicitária sairam assim que receberam tal informação. Após algum tempo, saiu um outro, recém-formado em Direito.

O superintendente falava e falava e minha mente já começava a fazer contas. Mil do registro e mais quinze dias pagando a locomoção até o bairro nobre, mais a alimentação no bairro nobre. Digo quinze dias porque durante esse período de treinamento o novo colaborador não poderia vender nada, só ficar aprendendo. E, depois, pra vender, era um outro parto.

Casas e apartamentos de R$500.000,00 pra cima, que era difícil (mas não impossível) pra caralho conseguir vender. Galera tem todo esse dinheiro, né, sabe no que está se metendo e costuma ser bem enjoada e exigente - e com razão.

Desanimei. Não tinha condições de arcar com as onerosas despesas iniciais pra ficar na corda bamba dependendo de um "talvez" do porvir.

Peguei um formulário com a relação dos documentos a serem levados amanhã no caso de eu ter interesse na coisa toda.

Fiquei até o final da palestra e, saindo de lá, peguei aquele elevador com vista pra rua e apertei o botão do vigésimo andar. Fui subindo. E olhando pra frente. A Paulista ao longe, o Parque do Ibirapuera logo ali. As casas da vizinhança com seus telhados exóticos, com empregadas de uniforme iguais aos das novelas passando panos nas vidraças dos apartamentos, regando plantas, chacoalhando toalhas de mesa na varanda. O dia estava apenas começando para alguns. Um grupo de rapazes entrou no vigésimo e começou a conversar enquanto o elevador descia e eu olhava o chão já com umas idéias erradas na cabeça. Pareciam ter a minha idade, no máximo. Garotões com a cara limpa, perfumados, comentando sobre almoçar numa temakeria. Desci no térreo e eles continuaram no elevador, pra pegar o carro no estacionamento.

E agora, esse senhor fodido da vida: QUEM TRABALHA TEM RIQUEZA.

A vida é uma coisa que eu nunca, nunca e nunca vou compreender. E quem disse que ela é pra ser compreendida?

Era um dia cheio de extremos. Zona Leste, Zona Sul. Rapazes novos na temakeria e velhos comendo com as mãos nas ruas. Flats de R$4.000,00/mês de aluguel e crianças largadas na rua com seus pés encardidos, rachados, carregando seu saquinho de cola de madeira perto do nariz. E eu pensando em suicídio e querendo viver.

E não sabendo/podendo fazer porra nenhuma com nenhum dos extremos acima...

Ainda não acabou.

O ônibus que é melhor pra mim é melhor pra torcida do Flamengo, também. Por isso, haviam duas filas enormes formadas diante do ponto do maldito que não estava por lá. Ótimo. E naquele terminal dos infernos, um calor miserável. Fui andando procurando o outro ônibus que serve pra mim e que faz um caminho muito que do idiota pela Celso Garcia.

Ele estava lá parado e tinha uma meia dúzia na fila esperando o próximo. Entrei na parada e sentei num banco da parte dianteira. O sol estava ardido e todo mundo suava e reclamava do calor. Meus pés doíam por causa do sapato. O motorista entrou, deu a partida e caímos fora dali. O cara que estava ao meu lado estava com uma ficha de encaminhamento para alguma empresa. Dei uma curiada e vi algo como "Status do Candidato: Aprovado". Alguém tinha que se dar bem nessa porra de vida, afinal.

Quando a barca parou no Brás, aconteceu o de sempre: mulheres escandalosas carregando meia dúzia de filhos e sacolas e bêbados oriundos de inferninhos que tocam forró com seus bafos de cachaça e pisadas nos pés alheios. Fiz o que pude pra tentar dormir - e consegui. Acordei uma hora depois e ainda faltava mais uns vinte minutos dentro daquela carroça lerda. O cara do meu lado não parava de olhar pra minha cara, querendo puxar papo - pude observar isso de soslaio. Quando olhei diretamente pra ele, de pronto o indivíduo fez um comentário ininteligível e eu fui premiado com um bafo de esgoto e com um sorriso. Dei um sorrisinho falso e virei a cara pro outro lado querendo vomitar. Ele continuou falando alguma coisa e eu fingi não ouvir. Na verdade, não ouvi, estava com o fone, coisa que ele estava ignorando, o que me dava o direito de ignorá-lo, também. Ele ficou mais relaxado quando conseguiu falar e ergueu o braço esquerdo e veio um cheiro forte de axila carente de sabonete, prestobarba, sabonete de novo, cândida, desinfetante, diabo verde, creolina, thinner, nitroglicerina, inseticida e um desodorante ao final.

Minha bunda já estava dolorida e quadrada de tanto ficar sentado e o motorista não tinha pressa nenhuma.

Não era o meu dia.

Como não agüentei mais a asa do meu companheiro de assento e uma velha não parava de me fuzilar com os olhos querendo meu lugar, levantei e passei pra trás. Fiquei atrás de uma mulata de um metro e meio de altura que era um verdadeiro tesão. Passando perto de uma escola que estudei, vi um fulano que na época dizia ser nazista. Continuava com a mesma altura, com a mesma cara de areia mijada, com seus óculos fundo de garrafa, com seus coturnos babacas e suas jaquetinhas de black metal. Ocorreu-me que de lá pra cá - da época da escola, quero dizer - houve uma grande evolução dentro de mim que vira e mexe me joga na parede e fala "Ei, você é contraditório a cada minuto. Cada contexto em que você se insere, você sai como um traídor". Realmente, mas, olhando aquele ser humano AINDA declamando-se membro de um partido europeu que pregava a pureza das raças arianas e blábláblá dentro dessa bacia de miscigenação que é nosso País, bem, não me sinto tão ridículo assim por me contradizer o tempo todo. Ou não...

Desci e fui ao mercado já pensando na chegada em casa. Colocar as garrafas no congelador, tomar um banho gelado, deitar por uma meia hora com a bunda pra cima e tentar escrever alguma coisa.

Não tinha a cerveja que eu queria.

Resolvi pegar um refrigerante bacana, mesmo, e ir pra casa logo.

Parei diante da faixa amarela da fila do caixa rápido. Só tinha um caixa funcionando e só tinha uma mulher na minha frente.

Pois bem.

Tinha acordado cedo e dormido pouco - e mal. Peguei um ônibus cheio até o metrô e, já na plataforma da estação, esperei 4 trens lotados até conseguir entrar em um - que veio vazio, não sei por qual milagre. Mas logo encheu, pois o da frente quebrou. O que fez com o trem circulasse com velocidade reduzida e ficasse parado nas plataformas por bons minutos. Depois de fazer mais duas baldeações, andei um pouco e peguei outro ônibus cheio. Fui até o banheiro do mercado pra colocar a camisa social (NUNCA que eu iria sair de casa com uma manga longa enfiada nas cuecas com esse calor dos infernos) e a porra tava interditada. Comecei a fazer a operação coloca-camisa no meio de uma escada dos funcionários e quando abri o zíper da calça fui surpreendido pelas moças da faxina. Depois veio a dinâmica. Depois o parque. Depois o ônibus que quebrou. Depois o quase atropelamento. Depois o ônibus lento com sacoladas e um fedorento. E agora ali, em frente a porra de um caixa rápido esperando por dez minutos uma sonsa que não sabia pesar uma melancia e uma retardada que tinha esquecido a senha do cartão do marido.

- Próximo!

Fui até lá tentando me recompor pra não ser mal educado. A mocinha do caixa limpava açúcar que tinha caído no balcão. Limpava mansamente. Bovinamente. Vagorosamente. Morosamente.

Respirei. Contei até dez. "Ela não tem culpa, ela não tem culpa". "Eu tenho todo o tempo do mundo pra te esperar, viu, sua puta?". "Ela não tem culpa, ela não tem culpa"...

Assim que ela terminou a limpeza, olhou pra Senhora-Pego-o-Cartão-do-Marido-Escondida. Esta última esticou uma nota de cinco reais, a moça registrou o recebimento e depois olhou pra mim com indiferença e perguntou se eu queria CPF na nota.

- Não, obrigado - Falei, cerrando os dentes de ódio.

Descendo a rua, o de sempre: marmanjo empinando pipa, galera na frente do bar com o porta-malas do carro do ano aberto com som de péssimo gosto sendo propagado com todos os decibéis possíveis e etc.

Chegando em casa, achando que a paz reinaria na minha alma mal humorada, fui recebido pelo cheiro de merda de gato. A cambada resolveu trocar o tipo de ração e o tipo de areia sanitária dos bichos e o resultado é que eles não gostaram da areia e estão cagando muito, e mole, e em qualquer lugar que eles vêem. O que tem me irritado, pois não sei se esfrego a cara dos bichos no lugar que eles cagam ou se esfrego a cara dos moradores dessa humildade residência no mesmo lugar cagado.

27/01/2011 - 21:58h - Home, Not So Sweet, Home

Acabaram de me ligar convidando pra tomar um negocinho na rua. Está calor e a noite está bonita. Vou conversar um pouco e ver se consigo ter alguma espécie de "elucidação" sobre tudo isso.

27/01/2011 - 22:02h - Home, Sweet Home

Não sei como terminar esse treco - assim como em todos os outros textos.

Talvez eu tenha que agradecer você que chegou até aqui após ler toda essa ladainha. É um sinal de que ainda consigo fazer alguma coisa nessa vida e que não preciso ficar caindo no item 1. deste relato e ficar vivendo este círculo vicioso de Morte, Ressurreição e Vida, em vida.

Obrigado mesmo, viu?

*peguei a mania desagradável de só conseguir identificar erros de digitação e similares depois que subo o texto. Se você leu com essa observação, releve, viu?

** Peguei mania de "viu?", também, viu?

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 27/01/2011
Reeditado em 27/01/2011
Código do texto: T2756360
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.