Teimosia muito humana

Transcrevo, resumidamente, a discussão de dois velhos enxadristas que jogavam xadrez por correspondência, em um tempo em que havia públicos, mas não multidão. Cada lance era enviado pelo correio e uma partida dessas levava de 1 a 2 anos para acabar. Wood Allen narrou o diálogo, por correspondência, e a tremenda confusão que ocorreu nesta partida, em um texto apenas aparentemente longo.

É um flagrante delicioso do ser humano, neste caso, com a sua cara legítima, ainda não desaparecido nas multidões de hoje, em um tempo em que a vida transcorria mais lentamente. O foco está na teimosia dos jogadores e não no jogo. Segurem a barriga, porque é demais hilariante e não é preciso conhecer xadrez.

Aconteceu mais ou menos assim:

- Wanderlei: tive um grande desgosto ao revisar minha correspondência esta manhã. Tomei conhecimento que minha carta de 16 de setembro, contendo meu vigésimo terceiro movimento (Cavalo 4 do Rei), me foi devolvida porque omiti o endereço da sua residência. Você não ignora que ando meio com a cabeça no ar, devido à queda das ações que tenho na Bolsa, principalmente as ações da Antimatéria. Meti os pés pelas mãos, perdoe-me. Todos cometemos erros. Assim é a vida, como no xadrez.

Pois bem, aclarado esse erro, devo fazer uma pequena retificação. Coloque o meu Cavalo na quarta casa do Rei, ficando também claro que o xeque-mate que você anuncia na carta de hoje não é possível. Uma vez mais rogo que aceite minhas explicações e fico daqui esperando o seu próximo movimento. Aproveito para dar o meu quadragésimo quinto movimento: meu cavalo come sua Rainha. Atentamente,

- Jorge: Recebi esta manhã sua carta relativa ao movimento 45 (seu cavalo come minha rainha?) Vejamos se compreendo corretamente. Seu cavalo que já saiu do jogo semanas atrás, você agora afirma que está na quarta casa do Rei. Devo-lhe dizer que neste momento a quarta casa do Rei está ocupada por minha torre e como você não tem mais bispos, em que pese a carta extraviada nos correios, não consigo entender com que peça você possa comer minha rainha. Como todas as suas peças estão bloqueadas, tomo a liberdade de fazer o seu lance, que é mover seu Rei na quarta casa do bispo. Aproveito para um contra-ataque, no meu movimento de hoje, o quadragésimo sexto. Agora sim, sua carta fica mais clara. Penso que os últimos movimentos que faltam para acabar o jogo poderão ser levados a cabo com sobriedade e presteza. Seu,

- Vanderlei: Acabo de ler sua última carta em que comunica o seu estrambólico movimento quarenta e seis pelo qual coloca o meu Rei numa casa que jamais poderá ficar. Por meio de um cálculo paciente, penso que encontrei a causa de sua confusão e falta de compreensão dos fatos, embora muito evidentes. Que a sua torre esteja na quarta casa do Rei é tão impossível como dois corpos num mesmo lugar. Se você verificar o movimento nove do jogo, comprovará que há muito tempo perdeu a torre. Isso aconteceu por causa daquela sua audaciosa operação suicida, tentando atacar de qualquer jeito e que lhe custou ambas as torres. Que fazem elas no tabuleiro neste momento? Refresco para você a minha versão do sucedido: a intensidade das trocas de peças no vigésimo segundo movimento deixaram você num estado de leve distração, e a consequente ansiedade que sentiu fez com que você não percebesse a chegada da minha carta, acabando por mover suas peças duas vezes seguidas, o que lhe deu uma vantagem injusta. Assim, não querendo remover o passado, pois seria tedioso e dificultoso falar dele agora, considero que a melhor maneira de retificar todo esse assunto é permitir-me a oportunidade de fazer agora dois movimentos consecutivos. O Justo é o Justo. Para tanto, em primeiro lugar, tomo seu bispo com meu peão. Logo, com esse movimento deixo sua Rainha sem proteção e também a como. Penso agora proceder com os últimos movimentos sem dificuldades .Anexo um diagrama para que você veja como está o tabuleiro neste momento. Atentamente,

- Jorge: Acabo de receber sua última carta, em que pese ser levemente incoerente, creio compreender o motivo do seu devaneio. Depois de haver estudado o diagrama que você enviou, ficou óbvio para mim que nas últimas seis semanas estamos jogando duas partidas de xadrez absolutamente distintas (eu, de acordo com a nossa correspondência; você, segundo normas muito esdrúxulas ao invés de usar um sistema racional). O movimento do Rei, que supostamente se extraviou nos correios, seria impossível no vigésimo segundo movimento. E quanto a permitir-lhe fazer dois movimentos consecutivos pra recuperar o que supostamente se extraviou nos correios, sem dúvida, é uma piada de sua parte, amigo. Aceitarei o primeiro movimento (você come o meu bispo), mas não posso permitir o segundo movimento, e, como é minha vez, como sua Rainha com minha torre. O fato de que você me comunica que não tenho torres significa muito pouco na realidade, porque só necessito dar uma olhada para o meu tabuleiro e vê-las vivas em plena batalha, cheias de astúcia e vigor. Por último , o diagrama que você sonha que existe deve ter recebido mais influência dos irmãos Marx do que do grande enxadrista Bobby Fischer e se fosse astuto mesmo, teria aproveitado melhor a leitura do livro de xadrez de Ninzowitsch, que você levou de minha biblioteca no inverno passado, escondido debaixo de seu paletó de couro. Sugiro que você estude o diagrama que estou lhe enviando. Assim, talvez possamos terminar o jogo com precisão. Confio em você,

- Vanderlei: Sem intenção de prolongar o assunto, já por si só confuso (sei que sua recente enfermidade o deixou um tanto debilitado provocando às vezes uma perda de todo o contato com a realidade), devo aproveitar esta oportunidade para desfazer este sórdido labirinto de circunstâncias, antes que de forma irrevogável cheguemos a uma conclusão Kafkiana. Deveria ter pensado que você não seria suficientemente cavalheiro para me permitir recuperar o segundo movimento, no lance 46. De acordo com o seu diagrama até parece que estamos seguindo as normas de Boxe do Estado de Nova York do que as normas da Federação de Xadrez Mundial. Sem por em dúvida de que sua intenção foi construtiva ao comer minha rainha, agora afirmo que chegaremos a um desastre, quando você se arroga ao poder arbitrário de decidir e atuar como um Ditador, escondendo os seus erros táticos e passando para a agressão (um costume que você mesmo condenou em nossos líderes mundiais em sua monografia “Sade e não violência”). Como já não consigo mais calcular com exatidão onde colocar meu bispo, sugiro o seguinte: fecho os olhos e o coloco no tabuleiro e se ambos aceitarmos o lugar fortuito em que ele ficar, poderemos continuar. Meu movimento quarenta e sete: meu cavalo come seu bispo. Atentamente,

- Jorge: Que estranha sua última carta! Bem intencionada, concisa e, no entanto, com todos aqueles elementos que poderiam ser ditos em certos meios intelectuais, como Jean Paul Sartre descreveu brilhantemente como “o nada”. A sua carta recorda esses diários que às vezes deixam os exploradores moribundos e perdidos no Polo Norte, ou aquelas cartas daqueles soldados alemães em Stalingrado. É fascinante comprovar até que ponto pode desintegrar-se a razão quando se enfrenta uma sinistra verdade ocasional e este escapismo que constrói defesas precárias contra o assalto de uma realidade demasiado terrível. Após pesar bem seus pretextos lunáticos, digo o seguinte: Sua rainha não existe. Diga-lhe adeus. O mesmo sucede com suas torres. Esqueça-se completamente de um dos seus bispos porque um eu já comi. O outro está situado em uma posição tão desoladora, longe da ação principal, que não conte com ele, ou terá um desgosto que partirá o seu coração. Meu movimento é bispo 5 cavalo e já anuncio xeque-mate no próximo lance. Cordiamente,

- Vanderlei: É óbvio que a tensão nervosa acabou por desmantelar o seu delicado aparato psíquico. Não me resta outra alternativa, antes que você termine com uma lesão permanente, dar o meu lance: Cavalo, sim, cavalo! Cavalo seis do Rei . Seu Rei só tem uma casa para ir, consequentemente, faço o lance final: Bispo 5 do Rei e xeque-mate!

Lamento que a competição tenha sido demasiadamente difícil para você, mas se pode servir de consolo, eu lhe direi que, depois de haverem observado minha técnica, vários mestres locais de xadrez desistiram de jogar comigo. Se você quer uma revanche, façamos um jogo ao vivo e espero que não suscite tantos protestos.

- Caro Vanderlei: Torre oito cavalo e xeque-mate!

Ao invés de atormentá-lo com novos detalhes acerca de meu xeque-mate, como acredito que você é essencialmente um homem honrado (algum dia, alguma forma de terapia me dará razão), aceito seu convite para um jogo ao vivo. Só pra lembrar: o marcador agora está 116 a Zero.

Saudações, Jorge

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