Um dia desses na delegacia: o ceguinho
Duas horas da tarde na ladeira dos Barris. Estávamos passando eu e uma amiga, quando um camelô grita: "Moça, sua bolsa tá aberta!". Paro para ver e, de fato, estava. Pronto. Havia sumido a carteira... Apenas ela. Viramos ao redor para ver se havia alguém fugindo, perguntamos aos ambulantes, olhamos no chão da rua, voltamos à loja que estávamos na esperança de haver esquecido-a lá, mas não conseguimos nada. Fugia-me à memória se a bolsa já estava aberta quando fui usar a carteira ou se, realmente, em poucos metros de distância da saída da loja para frente do Piedade, conseguiram abri-la com tanta agilidade, sem que ao menos reparasse. Perguntava-me se o homem que me alertou poderia ter visto o autor e estava encobrindo, e tudo que conseguia era me chatear ainda mais (se ele soubesse, nunca iria me dizer). Já tensa com o caso inédito, só restou-me ir ao posto policial mais próximo para dar queixa.
Na 1ª Delegacia dos Barris, no final da ladeira do Politeama, esperava ser atendida. Tudo tranqüilo até então, a atendente já havia feito a ficha com meus dados e os detalhes sobre o conteúdo da carteira, ou seja: quase todos os meus documentos, um cartão de crédito e, felizmente, apenas uma nota de dois reais. Faltava agora esperar novamente para receber o boletim de ocorrência. O cartão já havia sido bloqueado por uma simples ligação ao Itaú.
Meia hora se passou, entre papos superficiais com outros que também aguardavam serem atendidos e risadas de um desses programas de auditório de final da tarde. Casos de pessoas como aquelas que têm que dar queixa em posto policial para serem respeitadas. Entra na delegacia um deficiente visual negro, um pouco já velho, e, posteriormente, um homem irritado acompanhado por uma senhora branca levemente ferida no rosto.
O homem começa a reclamar, acusando o outro de ter batido na sua mãe e, num gesto brusco, quebra sua bengala ao meio para "dar-lhe uma lição". A polícia nem se intromete no caso, talvez por achar melhor que ele desconte sua raiva na bengala e não no deficiente. O ceguinho calmamente se desculpa, alega ter ocorrido um acidente e pede para que ele não faça isso, pois depende do objeto. Mas o homem exige justiça por parte do policial.
Algum tempo depois (e eu nem sabia mais quanto, por estar ali entretida com o caso), mãe e filho vão embora com a queixa prestada ao agressor da região. Me questionava, já quase tomando partido: "mas o que faria um homem desses bater numa senhora indefesa, que apenas passava na calçada? Que absurdo!".
O ceguinho ainda esperava sentado para falar com o delegado, enquanto conversava com um PM.
_Mas rapaz, por que você fez uma coisa dessas?; pergunta o oficial.
_Eu não fiz por querer, foi por culpa de um pivete lá da rua. Ele vive me roubando. Arranjei trabalho pra ele e ele continua metendo a mão no meu bolso pra pegar dinheiro. Fui bater nele e ela tava passando na hora.
Quando já achava ter entendido o mistério do caso e visto o suficiente por um dia, chega mais gente no posto. Eram seis mulheres, presas em dupla, acusadas de furto. No silêncio da sala, uma delas grita.
_Joel, é você Joel?!
O ceguinho logo se vira em direção à voz.
_Você se lembra de mim, Joel?; ela pergunta.
_Claro que sim, como você está?; ele responde surpreso.
_Eu tô ferida, olha; ela segura o braço dele e o coloca para tocar no corte.
_É, tá mesmo. Mas por que você tá aqui?
_Eu fui pega, Joel.
_Eu já falei pra você não roubar, se você precisar de alguma coisa me pede que eu te dou.
_Eu quero dinheiro pra comprar cigarro.
Ele pede para que ela retire os três reais do seu bolso na camisa.
_Dá um cigarro, Joel.
_Mas eu não acabei de te dar dinheiro?!
_Já acabou, Joel.
"Nossa, mas é cego mesmo"..., pensei. Ele logo pega um cigarro para dar-lhe. Pouco tempo depois, retiram-nas da sala de entrada do posto e a mulher se despede.
_Tchau Joel, não se esqueça de mim não, viu? Venha me visitar! Você vem me visitar, Joel?
_Sim, eu venho; afirma com segurança e abalado.
E prossegue o papo com o policial.
_Você conhece ela da onde?
_Ela era minha namorada. Levei ela pra morar comigo e depois ela me largou. Tá vendo o chinelo que ela tá? Ela tá calçada?
_Sim, ela está.
_Pois é, fui eu que dei. Eu sempre dizia pra ela: não rouba, o que você precisar eu te dou. E olha aí onde ela foi parar.
O tempo de espera acaba. Finalmente recebo o "BO" e uma pequena grande história cheia de coincidências ao voltar para casa.
mar 2007