Sinestesia Cultural de Domingo
Hoje tinha tudo para ser mais um domingo como outro qualquer, não fosse pelo fato de eu ter levantado os olhos da última página de um fantástico livro. Carlos Ruiz Zafón monta uma trama com um primor impar, onde consegue com maestria e sutileza mesclar estilos diversos.
Há alguns dias eu começara a lê-lo e infelizmente o tic-tac do tempo nos rouba as opções como nos mais belos romances. Eu não tinha escolha. Os compromissos sem conta desviavam a minha atenção da melodia harmoniosa incapaz de impressionar o sentido auditivo, porém inegável pelos demais.
Encontro-me em uma antiquíssima casa onde fora uma fazenda dos ancestrais da minha esposa. Hoje habitada por sua tia-avó de oitenta e cinco anos. Paredes antigas já descascadas como esperanças desfeitas, chão de madeira escuro que range os seus sentimentos mais profundos ao ser pisados pelos que passam alheios, forro de palha, móveis rústicos, cheiro de passado. O soalho reverbera sons de saudade ou de algo a ser esquecido.
De uma janela com um azul remoto, nesta tarde de mesma cor, ouço sons que despertam a consciência para a atualidade. Crianças conversando e rindo em uma vibração jovial. Observo além da janela jabuticabeiras que evaporam natureza. As árvores são capazes de repetir cada segundo dos tempos já esvaídos pelos ventos aqui ocorridos. A brisa mais uma vez traz um aroma de terra úmida.
Como é mágica a leitura. Há dois minutos eu passava pelas ruas de uma Barcelona por volta de 1950. Agora, mais mineiro que nunca, saio da janela e sento-me no fogão a lenha para saborear o café forte que cheirava toda a casa, entremeados por queijo fresco e uma prosa saudosa e divertida.
No último gole a sorver, fico com o olhar evasivo e contemplo as duas coisas que mais me chamaram a atenção no fim do livro. Uma, que são as pessoas de bom coração que fazem a vida valer a pena, e a outra, que uma boa leitura nos remete a bons momentos como este que agora desfruto ao lado da minha família.
Olhando a minha volta, com meio sorriso, só eu percebo o gracejo que a vida me proporciona. Estar simultaneamente em tempos antigos em pleno século XXI permeado por características do primeiro e do terceiro mundo. A viagem ao passado e ao futuro só é impossível para a ciência que não aceita a fantasia. Nas letras dispostas neste papel junto com a sensibilidade do momento, servimo-nos do holismo com naturalidade de poeta sem pretensão de sê-lo ou ofendê-lo.
Nada indigno de qualquer razão. Nenhuma reflexão alheia a sensibilidade. Somente a mistura de tudo junto em harmonia. A sinestesia em um segundo.
O leitor aceita mais uma xícara de café antes do próximo “causo”?