Rapunzel sem longas tranças

Nunca na história da minha vida, fiquei um dia inteiro trancafiada entre tijolos e cimento. Minto, é claro! Nos dias de chuvas e trovoadas não me arrisco – morrer de raios não deve ser das melhores mortes. Saio a desvendar novas ruas, nunca vi tantos cachorrinhos a passear com seus donos. Os paredões de prédios são assustadores, de repente surge uma praça, uma fonte, um parquinho, um pipoqueiro na rua. Acho um absurdo os pipoqueiros não terem um lugar privilegiado nas praças e parques. Pra evitar a sujeira? Ora bolas, em nome de uma dita ordem, se pisoteia nos principais personagens de um cenário.

O que sinto mais falta é de ouvir passarinhos no raiar das manhãs. Quando se presta bem atenção, percebe-se uma alegria infinita dos bichinhos. Periquito, mulatas e maritacas são irritantes, mas passarim não. Agora são pneus e motores, como se fossem ondas ruidosas de um mar raivoso. O vidraceiro perguntou: você consegue dormir? Respondi: tenho conseguido. O ser humano tem uma facilidade enorme de se adaptar, principalmente ao que é ruim,sucumbimos às nossas próprias armadilhas.

Por vezes gosto, por vezes desgosto deste lugar. As plantas vieram quase todas, a cruz de malta, probrezinha, como eu tive dúvidas de não trazê-la? Como abdicar da delicadeza de seus botões, de suas pequeninas pétalas brancas? Do perfume que só se sente com as narinas bem próximas, como num rito de adoração...

Aprecio os enfeites de parede, teto. Depois que aprendi a parafusear com chave de fenda, “todos os meus problemas se acabaram”, não necessito mais de furadeiras. Mas haja braço! Faz de conta que sou atleta! Falando nisso, ontem, no final da tarde, desci para nadar. Enquanto procurava a ducha, percebi que o público da beira das águas era composto exclusivamente pela espécie masculina. Bebiam e falava com pitadas de deboche sobre mulheres. Engraçado – fazia tempo que não ouvia este tipo de conversa. Primeiro, porque a dita espécie tem evoluído e os assuntos costumam permear diálogos mais francos e amistosos. Segundo, sei lá, acho que eu quem era a pessoa errada, na hora e local errados. Por alguns segundos permaneci, cadê a ducha? o que estou fazendo aqui? volto, não volto? puxa, já vesti o biquini e não vou nadar? A ducha apareceu. Enfiei a cabeça debaixo, criei coragem e fui. - Boa tarde. Nem olhei direito aquele tanto de olhos. O azulejo da piscina maior pareceu estar meio sujo. Meus pés foram me levando... Devo ter nadado uns vinte e cinco minutos, indo e voltando, indo e voltando, depois mergulhos, a braçada contínua sem puxar o ar, a volta de costas pra retomar o fôlego e as nuvens passeando pelo céu. - Aceita uma cerveja moça?

A moça que não é mais moça voltou para a sua masmorra, revigorada pela água e pelo ar. Sente pela florzinha amarela que só verá aberta nos finais de semana, pois quando sai o sol está nascendo e quando volta... que triste, a florzinha já se fechou. Mas tem a lua para seu consolo. Bem sob a janela, quando a noite começa, ela está lá, enorme, por vezes alaranjada. Após apagar todas as luzes, a moça se deita e se deixa banhar pelo clarão lunar.

FIM.

P.S. não poderia deixar de brincar com os números: T36 com T63, números invertidos. E lá vem o 3 e o 6 de novo: a idade da “moça”, 33, 3+3, 6.

Lígia Martins
Enviado por Lígia Martins em 25/01/2011
Código do texto: T2750686
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