Caminhos Cruzados, Caminhos Incertos
A lembrança mais antiga que eu tenho do Carlinhos: ele com o cabelo até o meio das costas, naturalmente mais liso do que qualquer moderna chapinha pode deixar o cabelo de uma mulher, descendo a rua de skate e distribuindo seus ollies altíssimos; ou então passando de bicicleta carregando alguma gaiola. Tinha paixão por passarinhos e por bicicletas. Fizemos muitos rolês de skate juntos pelo bairro. Fizemos alguns rolos com peças em que eu sempre me senti na vantagem de início e depois me sentia ludibriado. Mas tudo bem. Fora do skate, conversando, ele era meio chatinho, pra falar a verdade. Entrava em monólogos em que falava em alguma língua extraterrestre e depois te chamava a atenção perguntando "né, não?" e você acabava respondendo que "é, pode crer" mesmo sem saber do que se trata só pra não deixar o ser humano sem graça. Mas ele não se importava quando um ou outro falava que ele era meio louco e chato. Carlinhos era engraçado com algumas tiradas, também. E sempre me fazia dar risada quando estávamos em showzinhos punks safados na época e ele entrava na roda pogando parecendo um robô. Eram bons tempos! Fomos crescendo e ele parou de andar de skate e de colar na mesma galera que a minha na esquina e as bandas que promoviam tais encontros punks acabaram. Nos últimos quatro anos, se o vi dez vezes foi muito.
Conheci Livia na entrevista do meu último emprego. Ambos havíamos falado merda na frente de todo mundo e na dinâmica ficamos no mesmo grupo e, dentro do próprio grupo, formamos uma dupla dotada de certa combinação de sarcasmo e sagacidade que encantou a analista de RH e nos salvou a pele do fiasco anterior durante a entrevista. Fomos aprovados e acabamos nos encontrando alguns dias depois na entrega da documentação e, posteriormente, num evento de boas-vindas da empresa. Só pra variar um pouco, fomos parar no mesmo setor. Lá dentro, nosso sarcasmo combinado com a língua afiada da Juliana rendeu-nos certo isolamento um do outro por conta das risadas e tiradas. Lívia não tinha muita sorte. Ou tinha sorte até demais: no sábado da primeira semana de trabalho (dia em que me recusei a ir trabalhar, claro) um pivete tentou roubá-la num viaduto que era paralelo a rua do prédio da empresa. Ela tinha lutado kung fu ou coisa do tipo e resolveu não levar o desaforo pra casa e começou a bater no trombadinha. Só que, mau grado dela, ele conseguiu se enroscar na bolsa e saiu correndo. Ela, ao tentar puxar, acabou quebrando o dedinho da mão direita. Com essa, ficou uns três meses afastada. Voltou e trabalhou cerca de uma semana. No dia do pagamento, outra vez foi assaltada. Desta vez, o assaltante fez a gentileza de levar todo o salário que ela tinha acabado de sacar. Ficou mais um mês em casa e não me recordo do motivo. Voltou, trabalhou outros dois meses e foi promovida, deixando uma boa dúzia de alcoviteiros que trabalhavam conosco com o nariz torcido ao extremo. Um mês depois também fui promovido e passamos a trabalhar no mesmo andar, porém, em setores diferentes. Lívia, com seu ótimo humor, fez inúmeras amizades. Depois de um certo tempo, comecei a ter um troço (não conseguíamos nomear como aquilo como 'namoro' ou nada do gênero) com uma chefe dela e voltamos a freqüentar as mesmas mesas de bar, showzinhos de rock e rolês furados na Bela Cintra. Lívia vivia desaparecendo. Vivia de licença. Começou a estudar alguma coisa com matemática no meio e acabou desistindo, por ser complicado demais. E eu também tinha começado a estudar alguma coisa com muita matemática envolvida e acabei desistindo. "A gente tá fodido nessa vida", foi o que ela me disse, certa vez. Começou a fazer Educação Física e parecia estar melhor de tudo. Infelizmente, não foi o caso.
Janderson, na minha infância, era um nome que remetia ao mais alto escalão dos viciados em fliperama. Em todos os fliperamas num raio de 1km quadrado não havia sequer uma máquina em que as letras JAN não constassem nos dez primeiros nomes do ranking de pontuação. Quando ele chegava, certo silêncio tomava o lugar e quem estava jogando ficava meio temeroso de que ele entrasse contra e acabasse com a brincadeira. O tempo foi passando, como sempre. Lá pelos meus 16 anos, entre uma campanha de lista telefônica ou outra, eu não tinha muito o que fazer da vida. Andava de skate e jogava fliperama. Jogava muito fliperama e de certa forma fui ganhando um certo status no meio. Estava entre os quase-viciados, quase subindo de cargo pra Viciado Oficial. Passava tardes e tardes jogando The King of Fighters 2002 e torrando todos os meus trocados da campanha de entrega de lista telefônica anterior. Arranjava algumas brigas, alguns amigos e alguns inimigos. Mas era a porra do Janderson entrar no fliperama que eu começava a tremer de ódio. Ele entrava e começava o burburinho e o posterior silêncio. Ele colocava a ficha e acabava com a minha graça. Certa vez, eu acordei inspirado e fui lá jogar. Estava rolando uma disputa de cinco ou seis pessoas na 2002. Chegávamos a ficar cerca de meia hora esperando pra colocar a ficha na máquina e tentar a sorte com o vencedor da última rodada. Pois bem, coloquei minha ficha e depois de um longo tempo o marcador acima da barra de "sanguinho" alcançou a marca de 23 vitórias/fichas. A galera estava ficando realmente puta da vida comigo e eu fazendo render aquela ficha ao máximo. Então, adivinha quem chega? Ele mesmo, o Rei. Ele não pegou a fila. Eles deixaram que ele entrasse para me desafiar. Senti o habitual antagonismo pelo ser humano e não me preocupei muito. Oras, já tinha feito meus R$0,10 da ficha se multiplicarem por 23! O que aconteceu foi que ele, por excesso de confiança, acabou se dando mal e perdeu a primeira ficha. Perdeu a segunda e a terceira e saiu explodindo porta afora me xingando de tudo quanto era nome. Deixei um pivete jogando no meu lugar e saí atrás dele dando risada. Depois desse episódio, passei a ser respeitado como Viciado Oficial. E comecei a ter certa amizade com o Janderson, o Rei. Na realidade, ele era um ídolo, segundo suas próprias histórias. Tinha uma filha com uma loira espetacular (o que era verdade) e era capaz de derrubar um cara duas ou três vezes maior do que ele numa briga de bar. Naquelas tardes de vagabundagem e tédio, ele me contava histórias onde fazia longas caminhadas com uma mochila nas costas. Um dia descobriu uma cachoeira em Guarulhos que ninguém sabia da existência. Era capaz de tomar uma caixa de cerveja sozinho e me apontava quase todas as raparigas da rua e falava: "comi essa aí ontem lá na minha laje". Decidi que ele era realmente maçante e desde então passei a fazer o possível para evitar qualquer coisa mais longa do que um aperto de mão ocasional. Janderson é cerca de 6 anos mais velho do que eu. Na época das vacas magras das listas telefônicas, onde eu comecei a comprar ficha fiado e me desesperava quando minha dívida alcançava o montante de R$1,50, ele conseguia ficar devendo, todo mês, de R$50,00 a R$70,00 no fliperama. Sempre me perguntei como ele conseguia tamanha proeza.
Com o passar inclemente do tempo, descolei o emprego onde conheci a Lívia e que me fez não tomar mais nota da existência do Carlinhos. E, durante esse tempo, saindo cedo de casa, cumprimentava o Janderson, que estava na calçada da minha casa tomando sol de samba-canção. À noite, quando retornava ao lar após o longo dia de trabalho e de treinos (saía do trabalho e treinava muay thai e jiu-jitsu), lá estava o Janderson jogando bilhar no bar da frente de casa. Usava camisetas de uma marca de skate que eu acho bacana desde meados do ano 2000 e que até hoje não consegui criar coragem de pagar seu preço exorbitante. Claro que isso me dava certo desgosto. A última conversa que tive com ele ocorreu da seguinte forma e foi no final do ano passado: eu estava voltando de mais um dia de corno, de extremo saco cheio do trabalho e de tudo o mais e resolvi passar no mercado pra comprar algumas cervejinhas. Pois bem, chovia, as sacolas estavam pesadas e eu apertava o passo pra chegar mais rápido e me livrar daquilo tudo. Quando vejo na minha frente uma silhueta familiar. Um pouco mais larga na cintura. Mas familiar. Percebi quem era e fiquei desesperado. Não sabia se apertava o passo e passava do outro lado da rua correndo ou se acompanhava seus passos e continuava meu caminho na moita. A segunda opção era terrível, pois o apelido dele era Tartaruga... Bom, mau grado meu, o alarme de um carro disparou perto de mim e ele olhou pra trás e me viu. Parou e me esperou. Me cumprimentou e começou a falar do dia dele. Andamos cerca de cem metros e tudo o que ele fez durante o dia foi ficar testando uma máquina de mil jogos que recém tinha chegado no fliperama. Ah, mas me deu um troço, um desgosto inenarrável naquela hora!
Falo dessas três pessoas que fizeram parte da minha vida pois nas últimas semanas elas tiveram seu destino alterado ou por acidente, ou por "coisas da vida" ou por conseqüências de suas próprias atitudes.
A notícia chegou até mim por intermédio de um amigo no Twitter, que havia postado um link de uma reportagem de um grande jornal nacional. A notícia era sobre a morte de um funcionário de uma loja na região do Brás. Como esse meu amigo soltou um "vá em paz" em seu tweet, fiquei curioso e aflito e perguntei quem era, após ler a notícia e não reconhecer pelo nome a pessoa acidentada. Ele respondeu "É o Carlinhos, mano". Pois bem! Na hora você não acredita. Como? Por quê? Perguntas do tipo circulam na nossa cabeça e momentos vivenciados juntos brotam em nossa memória. Carlinhos passando com seus passarinhos. Carlinhos rodando no skate. Carlinhos saindo com a boca sangrando do bate-cabeça. Partiu de uma dessa pra melhor trabalhando. Passou dessa pra melhor de uma maneira terrível. Por quê? Chega a ser revoltante o modo como as coisas acontecem...
A outra notícia veio por Orkut, uma semana depois. Lívia sofria de uma doença rara e ficou durante um tempo internada correndo risco de vida. O pessoal do trabalho fez uma campanha de arrecadação para uma operação que até o momento não sei se foi feita ou não. Saí da empresa sem saber. No entanto, no próprio Orkut, Lívia colocou em seu nome algo como "Estou voltandooooo". Revirei seus recados e vi que ela estava bem. Não sei o porquê de não ter deixado nada pra ela, na ocasião. Um tempo depois, a minha ex-alguma-coisa me mandou um recado desesperada perguntando o que havia acontecido com a Lívia. Até então, eu não estava sabendo de nada. Mas o teor da pergunta me fez lembrar de uma outra amiga em comum que estava no MSN pela manhã com a palavra LUTO no nick. E o que aconteceu? Lívia voltou pra casa, teve uma recaída, voltou pro hospital mas acabou falecendo. Ela, que fazia a dança do pinto louco, que me chamava de mão torta fazendo uma chacota com suas próprias mãos tortas, que me aconselhava quando eu estava em crise com a minha ex-alguma-coisa. Fui até sua página de scraps e me deparei com o pessoal mandando recados de despedidas. Mais uma vez eu não conseguia acreditar na vida, na tramóia da vida, nos embustes da vida, no jogo da vida. Fiquei realmente abalado, desta vez, pois durante um bom tempo havíamos mantido uma amizade sem nenhum tipo de agrura, sempre com sorrisos e bom humor e ironia e sarcasmo.
Desta vez, a notícia veio por intermédio da família. Perguntaram-me se eu estava sabendo do que havia acontecido com o Janderson. Não fazia a menor idéia. Então fui informado: ele estava preso. Por quê? Porque chamou a polícia pra não ser linchado pela própria família. Por quê? Porque, bem, oras... Por quê? Coisa boba, coisa à toa... Engravidou uma sobrinha de 12 anos de idade. Sobrinha. De 12 anos de idade. Grávida.
"São coisas da vida", algum recanto lugar-comum da minha mente insiste em dizer pra mim. Um outro canto, um canto maldito da minha mente diz que A VIDA É UMA GRANDE E INJUSTA FILHA DA PUTICE!
Não dá pra conseguir me manter quieto e acreditar que o meu clássico axioma de "nada vale um esforço" seja realmente merecedor de atenção. Pois você cresce não fazendo o mal, faz de tudo pra ser uma pessoa razoavelmente decente trabalhando numa parte do dia e estudando em outra pra de repente ser assaltado por uma doença covarde ou ser vitimado num acidente ridículo enquanto um vagabundo que fica o dia inteiro com o cu pra cima se dá bem de todas as formas possíveis e ainda arranja tempo pra cometer uma atrocidade como a que foi citada acima. Qual que é a justiça disso tudo? O nexo disso tudo? Alguma coisa vale realmente o esforço que é feito? Me exaspera a possibilidade de me chafurdar em objetivos e conquistas para ver tudo ruir com o possível encontro com uma bala perdida oriunda de um vagabundo ou de um sarcoma que foi colocado em mim "pela vontade de Deus" e eu não creio que isso seja insegurança mas sim a praticidade de poupar esforços que não valerão de absolutamente porra nenhuma, no final das contas.
Esse mês de Janeiro está horrível! Fico até receoso de saber qual será a próxima ladainha que esses coveiros vão me trazer.
Quanto aos amigos, que descansem em paz, já que dela são mais do que merecedores.
Quanto ao outro, que conheça o inferno na Terra e faça valer sua inutilidade no planeta...
Quanto a mim, fico esperando a minha vez.
Assim como vocês!