Vida de solteiro - De uma conversa informal a infernal
- Olá, entre. Como vai?
- Mais ou menos. Melhor agora que farei negócio contigo.
- Na verdade economizei algum dinheiro para comprar esses CDs.
- Que bom. São raridades difíceis de encontrar e tem um...
- Ah, esse aqui. Sempre sonhei com isso. Estou realizando um sonho.
- Hum. Esse cara é muito bom. Sempre cantava tristeza. Ele teve muitas decepções na vida. Eu soube que ele era casado, tinha dois filhos. Um dia ele foi trabalhar, sua casa pegou fogo. Morreram os três.
- Nossa. Que triste.
- Será? E então. Com quantos vai ficar?
- Bem, ainda tenho que contar. Eu comprei uma máquina de lavar essa semana, depois que acabei de pagar o frigobar.
- Sério? Fantástico! Melhor para guardar os seus vinhos.
- Ah não. Os vinhos eu deixo ali mesmo. Não gosto gelado. Mas eu ponho pra gelar e depende de quem vem aqui.
- Hum. E vem muita gente aqui?
- (Risos). Tem as marcas.
- De que?
- Dos vinhos.
- Ah. Pensei que fossem delas. Podem ser muitas, sei lá.
- As pessoas têm personalidade. São como marcas, como perfumes. Os costumes, o jeito de comer, de falar. Umas gostam da persiana aberta, outras fechadas. Umas são inspiradoras, chegam à janela, olham para céu e falam poesias. Outras, quando chegam perto da janela me dá medo. Opa! Sai daí. Esse negócio é alto.
- É mesmo. E você?
- Eu, o que?
- Você vai na janela?
- Não sou um suicida não.
- Alguém já pulou?
- Quase.
- Por que você não muda para um andar mais baixo?
- Ah, não. Eu gosto daqui. Tenho cuidado com as visitas.
- Como é morar sozinho aqui?
- Aqui ou em qualquer lugar?
- Morar sozinho. Como é?
- Morar sozinho é aprender gostar de sua própria companhia. Eu leio, vejo filmes, cozinho o que gosto, fico acompanhado quando eu quero e sozinho quando preciso.
- Puxa. Quando eu quero ficar sozinho eu me tranco no banheiro.
- Faz o mesmo efeito?
- Não. Eu sempre saio antes porque alguém briga.
- O que você lê?
- Estou lendo um livro “Como ser solteiro num mundo de casados”.
- Que legal. É bom?
- Ótimo. Casamento, morar junto. Essas coisas são discutidas de forma cultural. A religião influenciou sempre, sabia?
- Sim. Meu pai falava que um homem solteiro sempre iria para o inferno.
- Já viu “O inferno de Dante”?
- Não. Tem esse?
- Risos. Essa foi a primeira concepção de inferno que existe. Pecado, gente pegando fogo (risos). Isso é tudo mito.
- Sério. Então, se eu me separar não vou pra lá?
- Depende. Existem uns inferninhos bem interessantes que pode ir depois de separado.
- Hum. Entendi. Eu não sei. Minha casa tá um inferno. Brigamos todo dia. Estou com gastrite de causa emocional. Voltei a fumar e estou tomando Rivotril para dormir. Agora estou vendendo meus CDs porque minha mulher não aguenta mais ouvir. Mas ela foi democrática. Disse que se eu me desfizesse dos CDs, ela faria o tratamento.
- Que tratamento?
- Para ronco.
- Ah. Sei. Vai vender mesmo todos esses CDs?
- Os raros tenho pena. Voltando ao assunto. Sempre pensei nisso. Que o inferno não existe.
- Então fica com os CDs. Não vende não.
- Onde vou ouvir?
- Deixará de ouvir Roy Orbison por causa do ronco da sua mulher?
- Acha que posso conciliar os dois?
- Você que sabe!
- Então. Deixa eu pensar mais. Você se importa?
- O que vai pensar?
- (Choros)...
- Sei.
- (Mais choros).
- Ai.
- (Muito mais choros).
- Sempre quis me separar.
- Não estou te aconselhando.
- Quero ouvir os meus CDs.
- Então. Vamos procurar apartamento para alugar.
- (Alívio). Quero que meu apartamento seja um inferninho.
- (Risos)
- Mas na porta terá uma plaquinha, escrito CÉU. Amigo. Me dá esses CDs aqui agora. Não vou mais te vender.