SÃO, SÃO PAULO, MEU AMOR.
“São, São Paulo meu amor
São, São Paulo quanta dor”
Tom Zé.
Eu estava no Teatro Record naquela noite fazendo coro pelo Divino Maravilhoso do Caetano Velloso, cantado divinamente pela Gal Costa, cantora que me parecia saída diretamente de um ninho de sabiás para o palco daquele teatro esfuziante e barulhento, saturado com mil cartazes e vozes, cada um defendendo a sua preferência. Aquilo era mais animado que um comício, mais politizado que uma convenção de partidos.
Em 1968, aquela era a política que podíamos fazer, a preferência que podíamos exercer, o sentimento que podíamos exprimir. Mil novecentos e sessenta e oito, como disse o Zuenir Ventura, foi o ano que não acabou. Ele ficou nas nossas almas, como âncoras de um espírito que jamais se conformaria a um tu deves, pois tudo que havia em nossas almas era um tributo ao tu queres.
"São oito milhões de habitantes, De todo canto em ação, Que se agridem cortesmente, Morrendo a todo vapor, E amando com todo ódio, Se odeiam com todo amor," dizia a canção do Tom Zé, que ganhou aquele inesquecível festival. Eu e minha “troupe” da PUC torcíamos, como já disse, pelo Caetano, com seu Divino Maravilhoso. Caetano, com seus novos baianos, era uma novidade estilística que estava saindo da Bahia e ganhando o país com seu jeito debochado de ver a vida e sua rebeldia socialista de caboclo afro-brasileiro que procurava adaptar a cultura hippie dos anos sessenta ao modo de viver carioquesco e soteropolitano que então parecia ser a tendência da juventude estudantil daqueles anos de chumbo. E eles vieram vender essa idéia - o tropicalismo - justamente na antiga, formal e conservadora São Paulo, onde, diga o que disserem, começam todos os caminhos que o espírito brasileiro percorre na sua ânsia de construir um país.
Tínhamos, naquele glorioso ano de 1968, “Oito milhões de habitantes, Aglomerada solidão”, ladeada por “Por mil chaminés e carros, Caseados à prestação”. Dizia-se que São Paulo crescia, naquela época, uma Montevidéu por ano. Ainda bem que as cidades, como as pessoas, também tem a sua fase de estirão e depois param. Se assim não fosse, teríamos hoje mais de 40 milhões de habitantes disputando espaço nas nossas congestionadas ruas e nos nossos insuficientes meios de transporte. Quarenta milhões brigando por serviços públicos que não conseguem atender a metade da população atual. Aglomerada solidão que seria ainda mais densa e solitária que o paulistano de hoje, tão aberto e rico em suas relações comerciais e tão fechado e pobre em suas relações pessoais.
“Porém com todo defeito, Te carrego no meu peito. São, São Paulo Meu amor São, São Paulo Quanta dor,” cantava o Tom Zé. E enquanto ele cantava, e o povo exultava, por ter encontrado na sua canção, ao mesmo tempo um homônimo e um antônimo para tudo que São Paulo era, eu pensava nos próprios primeiros contatos com São Paulo. Foi no começo dos anos sessenta como cobrador de ônibus da extinta linha Mogi Ltda, que trafegava entre Mogi das Cruzes e São Paulo. Saia da antiga Estação Ferroviária de Mogi, atravessava toda a Zona Leste de São Paulo e parava na Avenida Aganhabaú, perto do prédio Martinelli. Eu fazia a cobrança das passagens no próprio ônibus, usando os dedos da mão esquerda como escaninhos para o dinheiro que recebia das passagens e a mão esquerda para segurar e destacar os bilhetes de cada trecho. Um menino de quinze anos segurando um maço de notas entre os dedos, dentro de um ônibus lotado, atravessando toda a Zona Leste de São Paulo! Imaginem uma coisa dessas nos dias de hoje.
Nas horas de folga passeava pela rua Aurora das meninas de vida fácil ( fácil uma ova), pela Avenida São João dos cinemas e bares, pela Brigadeiro dos teatros. Ás vezes arriscava ir até a Augusta das belas boutiques e a Paulista das luzes e dos bancos.
“Salvai-nos por caridade, Pecadoras invadiram, Todo centro da cidade. Armadas de rouge e batom, Dando vivas ao bom humor, Num atentado contra o pudor, A família protegida, Um palavrão reprimido, Um pregador que condena, Uma bomba por quinzena. Porém com todo defeito Te carrego no meu peito.
Sim. Também sempre carreguei São Paulo dentro do peito. Trabalhei quase toda a minha vida lá. Mas nunca quis morar nessa cidade. Sempre achei que são Paulo era lugar para trabalhar e ganhar dinheiro mas não para morar. Temor de caipira, que eu nunca consegui superar. Barulho demais, gente demais, automóveis demais. Preferia gastar quatro horas por dia do meu tempo pegando o subúrbio da Central para ir de Mogi a São Paulo, a primeira, lugar ideal para dormir, a segunda a praça ideal para trabalhar. Depois, quando a vida melhorou, fiz esse trajeto de carro durante mais de vinte de anos, sem nunca me estressar no trânsito da Marginal. Sinto-me hoje um sobrevivente do Armagedon e continuo praticando essa aventura de vez em quando só para matar a saudade.
É “ que alguma coisa acontece no meu coração" . Não só quando cruzo a Ipiranga e a avenida São João”, mas sempre que vou a São Paulo e relembro todas as experiências que vivi nessa cidade. Eu também, “quando cheguei por aqui nada entendi, Da dura poesia concreta de tuas esquinas. Da deselegância discreta de tuas meninas”. Não, nisso nunca concordei com o Caetano. Mulheres mais bonitas e elegantes que as paulistanas eu não vi em nenhuma outra cidade do mundo. E eu já visitei um bom número delas por esse mundo afora. Uma vez segui uma morena pela Rua São Bento inteirinha, como se eu fosse um ratinho seduzido pelo Flautista de Hamelim. Segui-a só pelo deleite de vê-la balançar, dentro de um justíssimo vestido azul, que parecia ter aderido ao corpo dela como uma segunda pele. Teria seguido a morena pela cidade inteira, só para para me deleitar com aquele balanço contagiante e provocador, se ela não tivesse entrado num prédio onde o porteiro era um pitbull fardado que congelou o meu sangue só com um olhar.
Dizem que Caetano, com a música Sampa, na verdade esculhambou São Paulo mostrando mais os seus contrastes do que a sua beleza concreta e realista que afugenta os tímidos e amedronta os pacatos. Eu não acho isso não. A poesia de Caetano mostra um imigrante perplexo perante uma grandiosidade que ele não consegue abarcar com seus seus conhecimentos, mas sabe admirar com seus sentimentos. É a atitude de um menino maravilhado com algo que ele não entende mas ao mesmo tempo o fascina. Eu mesmo senti isso na primeira vez que desemabarquei em São Paulo e não sabia para que lado me virar por que tudo para me parecia tão igual e diferente ao mesmo tempo.
Em São Paulo o romantismo passivo dos conformados só é tolerado como motivo de poesia, como nos saudosos versos de Zica Bérgamo que Inezita Barroso cantava nos anos cinquenta: “Minha São Paulo, calma e serena, que era pequena, mas grande demais, agora cresceu, mas tudo morreu, Lampião de gás, que saudades me tráz.” São Paulo amedontra e fascina, mas para quem sabe amá-la e cativá-la ela entrega, sem reservas, os seus tesouros.
São Paulo não é mais a criança de Zica Bérgamo nem o adolescente do Tom Zé. Talvez continue a ser a Gestalt de Caetano Velloso, mas para quem sabe olhar ela tem um rosto lindíssimo e um corpo imenso que dá vontade de abraçar. Não tem mais o romantismo do lampião de gás nem está mais em permanente estirão como nos dias de Tom Zé. São Paulo hoje é um adulto com todas suas dúvidas, suas certezas, suas virtudes e defeitos. Talvez seja a hora de começar a amadurecer de verdade, que é o que acontece com as pessoas que souberam aproveitar suas experiências, boas e ruins, para aprender a viver bem, com mais qualidade e humanização. São Paulo tem tudo para isso.
Seja como for, numa coisa eu concordo com Tom Zé. Com todo e qualquer defeito, São Paulo, eu também te carrego no meu peito.
Para São Paulo, pelo seus 457 anos.
“São, São Paulo meu amor
São, São Paulo quanta dor”
Tom Zé.
Eu estava no Teatro Record naquela noite fazendo coro pelo Divino Maravilhoso do Caetano Velloso, cantado divinamente pela Gal Costa, cantora que me parecia saída diretamente de um ninho de sabiás para o palco daquele teatro esfuziante e barulhento, saturado com mil cartazes e vozes, cada um defendendo a sua preferência. Aquilo era mais animado que um comício, mais politizado que uma convenção de partidos.
Em 1968, aquela era a política que podíamos fazer, a preferência que podíamos exercer, o sentimento que podíamos exprimir. Mil novecentos e sessenta e oito, como disse o Zuenir Ventura, foi o ano que não acabou. Ele ficou nas nossas almas, como âncoras de um espírito que jamais se conformaria a um tu deves, pois tudo que havia em nossas almas era um tributo ao tu queres.
"São oito milhões de habitantes, De todo canto em ação, Que se agridem cortesmente, Morrendo a todo vapor, E amando com todo ódio, Se odeiam com todo amor," dizia a canção do Tom Zé, que ganhou aquele inesquecível festival. Eu e minha “troupe” da PUC torcíamos, como já disse, pelo Caetano, com seu Divino Maravilhoso. Caetano, com seus novos baianos, era uma novidade estilística que estava saindo da Bahia e ganhando o país com seu jeito debochado de ver a vida e sua rebeldia socialista de caboclo afro-brasileiro que procurava adaptar a cultura hippie dos anos sessenta ao modo de viver carioquesco e soteropolitano que então parecia ser a tendência da juventude estudantil daqueles anos de chumbo. E eles vieram vender essa idéia - o tropicalismo - justamente na antiga, formal e conservadora São Paulo, onde, diga o que disserem, começam todos os caminhos que o espírito brasileiro percorre na sua ânsia de construir um país.
Tínhamos, naquele glorioso ano de 1968, “Oito milhões de habitantes, Aglomerada solidão”, ladeada por “Por mil chaminés e carros, Caseados à prestação”. Dizia-se que São Paulo crescia, naquela época, uma Montevidéu por ano. Ainda bem que as cidades, como as pessoas, também tem a sua fase de estirão e depois param. Se assim não fosse, teríamos hoje mais de 40 milhões de habitantes disputando espaço nas nossas congestionadas ruas e nos nossos insuficientes meios de transporte. Quarenta milhões brigando por serviços públicos que não conseguem atender a metade da população atual. Aglomerada solidão que seria ainda mais densa e solitária que o paulistano de hoje, tão aberto e rico em suas relações comerciais e tão fechado e pobre em suas relações pessoais.
“Porém com todo defeito, Te carrego no meu peito. São, São Paulo Meu amor São, São Paulo Quanta dor,” cantava o Tom Zé. E enquanto ele cantava, e o povo exultava, por ter encontrado na sua canção, ao mesmo tempo um homônimo e um antônimo para tudo que São Paulo era, eu pensava nos próprios primeiros contatos com São Paulo. Foi no começo dos anos sessenta como cobrador de ônibus da extinta linha Mogi Ltda, que trafegava entre Mogi das Cruzes e São Paulo. Saia da antiga Estação Ferroviária de Mogi, atravessava toda a Zona Leste de São Paulo e parava na Avenida Aganhabaú, perto do prédio Martinelli. Eu fazia a cobrança das passagens no próprio ônibus, usando os dedos da mão esquerda como escaninhos para o dinheiro que recebia das passagens e a mão esquerda para segurar e destacar os bilhetes de cada trecho. Um menino de quinze anos segurando um maço de notas entre os dedos, dentro de um ônibus lotado, atravessando toda a Zona Leste de São Paulo! Imaginem uma coisa dessas nos dias de hoje.
Nas horas de folga passeava pela rua Aurora das meninas de vida fácil ( fácil uma ova), pela Avenida São João dos cinemas e bares, pela Brigadeiro dos teatros. Ás vezes arriscava ir até a Augusta das belas boutiques e a Paulista das luzes e dos bancos.
“Salvai-nos por caridade, Pecadoras invadiram, Todo centro da cidade. Armadas de rouge e batom, Dando vivas ao bom humor, Num atentado contra o pudor, A família protegida, Um palavrão reprimido, Um pregador que condena, Uma bomba por quinzena. Porém com todo defeito Te carrego no meu peito.
Sim. Também sempre carreguei São Paulo dentro do peito. Trabalhei quase toda a minha vida lá. Mas nunca quis morar nessa cidade. Sempre achei que são Paulo era lugar para trabalhar e ganhar dinheiro mas não para morar. Temor de caipira, que eu nunca consegui superar. Barulho demais, gente demais, automóveis demais. Preferia gastar quatro horas por dia do meu tempo pegando o subúrbio da Central para ir de Mogi a São Paulo, a primeira, lugar ideal para dormir, a segunda a praça ideal para trabalhar. Depois, quando a vida melhorou, fiz esse trajeto de carro durante mais de vinte de anos, sem nunca me estressar no trânsito da Marginal. Sinto-me hoje um sobrevivente do Armagedon e continuo praticando essa aventura de vez em quando só para matar a saudade.
É “ que alguma coisa acontece no meu coração" . Não só quando cruzo a Ipiranga e a avenida São João”, mas sempre que vou a São Paulo e relembro todas as experiências que vivi nessa cidade. Eu também, “quando cheguei por aqui nada entendi, Da dura poesia concreta de tuas esquinas. Da deselegância discreta de tuas meninas”. Não, nisso nunca concordei com o Caetano. Mulheres mais bonitas e elegantes que as paulistanas eu não vi em nenhuma outra cidade do mundo. E eu já visitei um bom número delas por esse mundo afora. Uma vez segui uma morena pela Rua São Bento inteirinha, como se eu fosse um ratinho seduzido pelo Flautista de Hamelim. Segui-a só pelo deleite de vê-la balançar, dentro de um justíssimo vestido azul, que parecia ter aderido ao corpo dela como uma segunda pele. Teria seguido a morena pela cidade inteira, só para para me deleitar com aquele balanço contagiante e provocador, se ela não tivesse entrado num prédio onde o porteiro era um pitbull fardado que congelou o meu sangue só com um olhar.
Dizem que Caetano, com a música Sampa, na verdade esculhambou São Paulo mostrando mais os seus contrastes do que a sua beleza concreta e realista que afugenta os tímidos e amedronta os pacatos. Eu não acho isso não. A poesia de Caetano mostra um imigrante perplexo perante uma grandiosidade que ele não consegue abarcar com seus seus conhecimentos, mas sabe admirar com seus sentimentos. É a atitude de um menino maravilhado com algo que ele não entende mas ao mesmo tempo o fascina. Eu mesmo senti isso na primeira vez que desemabarquei em São Paulo e não sabia para que lado me virar por que tudo para me parecia tão igual e diferente ao mesmo tempo.
Em São Paulo o romantismo passivo dos conformados só é tolerado como motivo de poesia, como nos saudosos versos de Zica Bérgamo que Inezita Barroso cantava nos anos cinquenta: “Minha São Paulo, calma e serena, que era pequena, mas grande demais, agora cresceu, mas tudo morreu, Lampião de gás, que saudades me tráz.” São Paulo amedontra e fascina, mas para quem sabe amá-la e cativá-la ela entrega, sem reservas, os seus tesouros.
São Paulo não é mais a criança de Zica Bérgamo nem o adolescente do Tom Zé. Talvez continue a ser a Gestalt de Caetano Velloso, mas para quem sabe olhar ela tem um rosto lindíssimo e um corpo imenso que dá vontade de abraçar. Não tem mais o romantismo do lampião de gás nem está mais em permanente estirão como nos dias de Tom Zé. São Paulo hoje é um adulto com todas suas dúvidas, suas certezas, suas virtudes e defeitos. Talvez seja a hora de começar a amadurecer de verdade, que é o que acontece com as pessoas que souberam aproveitar suas experiências, boas e ruins, para aprender a viver bem, com mais qualidade e humanização. São Paulo tem tudo para isso.
Seja como for, numa coisa eu concordo com Tom Zé. Com todo e qualquer defeito, São Paulo, eu também te carrego no meu peito.
Para São Paulo, pelo seus 457 anos.