O hipócrita
Acordo. Como sempre faço todas as manhãs, levanto e apanho o matutino deixado pelo jornaleiro diariamente debaixo da porta de entrada ou da rua como queiram e começo a devorá-lo, no sentido figurado é bom esclarecer. Assim tem início a vida de um pacato cidadão citadino.
Leio todas as crônicas, artigos, até os classificados. Estes às vezes trazem algo interessante. Vou devorando com os olhos, crônica por crônica, artigo por artigo, letra por letra... Enfim. Alguns artigos até são tragáveis e emocionam. Outros, muito pelo contrário, são azamboados e não descem à goela. E justamente nos deste tipo me detenho, neste exato momento, pois um deles atravancou-me à garganta.
Ia já ao finalzinho da leitura do matutino. Não faltavam mais que duas páginas para findar minha tarefa diária quando, na coluna do horóscopo (ninguém acredita, mas todo mundo dá uma olhadinha) o horoscopista dizia, para os do meu signo, ser aquele um grande dia. Indicava a cor a ser usada, o número de sorte, e recomendava-me – na qualidade de leonino que sou – a prática de uma boa ação, ajudando pessoas necessitadas.
Parei a leitura e pensei: justo eu, que não me deixo impressionar por Astrologia, Quiromancia, Numerologia, Tarologia ou coisa que o valha, muito embora ache válido o estudo dos astrólogos acerca da personalidade do indivíduo sob influência astral.
Achei aquilo divertido! E, voltando inteiramente para a minha ironia, sorri muito diante de tamanha hipocrisia. Não me contive e não pude permanecer impassível ao ver aquele homem colocar tanta hipocrisia a serviço da humanidade. Cônscio de estar realmente passando o seu “gato por lebre”, livre de contestação.
“Ajudar pessoas necessitadas”. Esta frase me martelou a mente e pensei comigo mesmo: É, deveras, um lindo gesto ser filantropo, prestando um belo serviço à humanidade! Porém me deparei diante de um intrincado dilema. Este sugerido gesto seria um belo serviço ou um desserviço? Optei pela primeira premissa. De fato é belo... E como soa bem! “Um grande serviço à humanidade”!
Intrigou-me, contudo, a maneira imperativa como o hipócrita me ordenava:
-“Faça uma boa ação neste dia, ajude às pessoas necessitadas”!
Conclui, então, como é bom mandar e me perguntei: será que esse senhor mandão começou o próprio dia praticando uma boa ação?
Provavelmente não.
Será que o senhor, com sua voz imperiosa no mais sublime gesto humanitário transcrita no artigo do matutino, previu a possibilidade de tais escritos caírem justamente em mãos de um necessitado?
Claro que não!
É muito bom mandar:
“Preste um grande serviço à humanidade, ajude às pessoas necessitadas”!.