Tudo passa (mas quando não passa, exorciza-se)
Tudo passa (mas quando não passa, exorciza-se)
Fátima Dannemann
“Um rio que passou em minha vida”, diz a música. Rio ou oceano. Depende da intensidade. Ou um simples brejo daqueles que se atravessa a pé enquanto as piabas insistem em morder nosso sapato. Até as piabas passam e por mais que muitas incomodem elas passam. Vão, se perdem na correnteza da vida. Tchau e benção para os que chegam sem ser chamados, ou até os que vêm por engano, ou mesmo os que são convidados mas que... Ah, são piabinhas num rio. Incomodam, chateiam, mas juntem-se cem deles numa gamela que não dá meia moqueca e se der não passará de um tira-gosto meio indigesto mas ainda assim só um tira-gosto. E até o engasgo que as espinhas desses peixes provoquem há de passar. Rio ou oceano, piaba ou tubarão, tudo é tão passageiro que os budistas falam em impermanência e os estilistas inventaram a moda para justificar a efemeridade dos costumes.
Um rio... Um oceano... Vemos gente que gritava palavras de ordem sumirem nas esquinas e esquecerem o caminho de volta. Artistas novos que chegam prometendo ser a mais nova estrela do pedaço sumirem depois do final da novela. A top-model que inspirava bulimia nas meninas se perderem entre as brumas dos conselhos médicos e das denuncias da mídia que não quer mais magricelas de olheiras pretas servindo de cabide para modelitos de gosto duvidosos que serão apenas passado depois do desfile. Um rio que passou pela vida, ou a vida que é um rio desaguando no oceano que é um universo muito maior que o nhem-nhem-nhem dos sonhos e tramas dos humanos. O nirvana dos budistas, talvez. Ou o céu do resto do mundo. Maior e definitivo, sabe-se lá... Quem sabe a tal Passargada do poeta. Mas até poemas passam.
Sim, até poemas passam e muitos deles passam graças a deus. Com esses versos toscos vão poetas que também passam, mas passam em branco como folhas de papel de um bloco não riscado. E passam músicas, modas, livros, nomes. Sim, nomes também voam, passam por nossos olhos e somem de vista como acontece quando se olham páginas de um catálogo de telefones. Nomes, endereços, números de telefones e de celulares, uins de icq, lugares da moda, coisas da moda. Num exercício de memória alguém resolve fazer uma lista: quem se lembra do uísque que se bebia aos litros nas festinhas nos tempos de dureza? Os tempos de dureza passaram. Alguém quer de volta a dureza de outros tempos, mas os duros daquele tempo amoleceram. Não, a vida passa. O rio corre em frente, não volta a nascente e ninguém se importa. Nem o rio, nem as piabas que insistem em mordiscar as pernas dos intrusos que atravessam os brejos a pé quando nem há sentido para pontes.
Foi-se o rio que passou por nossas vidas. Ou é o mesmo rio que continua ali passando, mas mudando sempre, pois cada dia a água se renova. Um rio que passou pela vida diz a música. Um velho samba enredo, mas até os sambas-enredo se modificaram. O rio passa, mas quem vê? Muitos nem notam. Não vêem que a modelo magricela que faturava horrores vende óculos para sobreviver. Ou que a atriz que estava na pior achou quem lhe estendesse a mão e voltou à cena. Ah, sim. A água do rio passa e limpa a sujeira. Conserta o que está errado. Alivia. Mudam-se os modos e as modas. Mas traz alívio. A enxurrada leva os males e as malas. O mal e os malas. Lava, leva os resíduos. Nem represas resistem quando força do rio cresce. Olham-se as piabas debatendo-se no turbilhão das cachoeiras e tem-se a certeza: muita delas já foram tarde. Nem lembrança deixaram porque... Ah, era um rio. Podia ser um oceano. Ai, as pequenas piabas mordiscantes poderiam ser tubarões. Mas... Nem todos são tão vorazes ou ferozes. E alguns até... Mas até tubarões passam. Vão para praias mais propicias. O que fica? Marcas de maré, cachoeiras, represas, lagos, recifes. Faróis e barcos... Ah, faróis e barcos porque luz é preciso (navegar? Alguém já falou isso antes... Nem frases se repetem. Não precisa...)... E tudo passa (mas quando não passar, exorciza-se).