Uma crônica paulistana: Feitos um para o outro.
Numa tarde quente de sábado, Evinha vira-se para o namorado e diz:
- Sabe, Adãozinho, ontem mamãe falou aquilo de novo...
- Aquilo o quê?
- Que nós fomos feitos um para o outro.
- Só porque somos Adão e Eva?
- Ela acha que se o destino nos aproximou é porque essa é a vontade de Deus.
- Ela acredita então que nós temos que reeditar o casal bíblico? Olha lá que o final daquela estória não foi dos mais felizes.
- Mas a mamãe acha que com a gente o final vai ser feliz; que nós vamos construir o lar perfeito, viver no paraíso.
- Está muito bem! Quer dizer que por nosso intermédio, finalmente Adão e Eva serão perdoados pelo Senhor.
- Ela diz que reza muito por nós e acha sim que nós temos uma missão na terra, além de dar netinhos para ela e vivermos felizes para sempre.
- Está certo. Nossa missão agora é redimir Adão e Eva. Quanta responsabilidade, hein? Dona Zu tem cada uma...
- Quantas vezes eu tenho de dizer a você que Zu é tia Zuleica, irmã de mamãe. Mamãe é Zula, por favor.
- Certo, certo. Mas que tinha muito mais lógica que sua mãe, que é Zulmira, fosse Zu e que a sua tia Zuleica fosse Zula, disso não tenha dúvida.
- Só você é que acha isso e vive confundindo as duas. Para mim é a coisa mais natural do mundo; desde pequeninha que eu sou a filha da dona Zula e a sobrinha da tia Zu.
- Pois é; desde pequena você foi condicionada.
- Pronto! Agora vamos brigar.
De fato brigaram. Viviam de briga por qualquer coisa que fosse, mas nada de grave. Daí a pouco voltavam às boas e tudo ia bem. Até a próxima briguinha.
O namoro tinha começado mais ou menos uns três anos depois do golpe militar e, quanto a isso, tinham também suas diferenças. Eva, por exemplo, tinha cursado o normal, era envolvida com o grêmio da escola e gostava de discutir política. Adão tinha feito o colégio técnico e se formara contador. Seu pai tinha sido da polícia e, como Adão sempre fazia questão de contar, morrera no cumprimento do dever. A tragédia em família fez com que ele tivesse de começar cedo a trabalhar. Desde os catorze anos, época em que passou a estudar à noite. Conheceram-se numa festa de aniversário; Eva fora acompanhando uma amiga e Adão tinha sido levando por um colega do trabalho. Flertaram, dançaram juntos, começaram a namorar.
Como lhes disse, viviam-se os chamados anos de chumbo e as opiniões de Eva e Adão não eram alinhadas. Ela era uma quase ativista; ele estava muito perto do que se poderia chamar de reacionário. O que para ela era golpe, para ele era revolução. Quando ele falava que os militares tinham salvado o país do comunismo, que havia um processo democrático em andamento e que a baderna havia dado lugar à ordem e ao progresso, ela retrucava simplesmente:
- Ditadura, isso sim. Vivemos uma ditadura. Não tem democracia coisíssima nenhuma, não me venha com essa. Ninguém pode pensar diferente dos militares que eles mandam prender. As prisões estão cheias...
- Cheias de agitadores, assaltantes de banco. É tudo terrorista.
- Nada disso. Só não vê quem não quer ver. Não há mais nenhuma liberdade de opinião. Se dois ou três estudantes se reúnem para falar de política isso já é visto como uma conspiração; vem a polícia e desce o cassetete.
- Estudante tem mais é que estudar e não ficar fazendo greve, passeata, agitação...
- Pronto! Agora vamos brigar.
E de fato brigavam.
Ocorre que o tempo se encarrega de ir superando tudo. Para o bem e para o mal.
Dois anos depois de casados, Adão e Eva estavam com dois filhos, ou seja, cem por cento de produtividade reprodutiva ou lá o que quer que seja que isso signifique.
E dona Zula, que para Adão continuava sendo Zu, estava exultante com dois netinhos.
Eram dois meninos – Ítalo e Otávio Augusto – que vendiam saúde, como dizia a avó. Ítalo fora exigência de Adão; era o nome de seu pai. O nome do segundo filho foi escolha de Eva que era fissurada em nomes compostos. Quando o menino e seu nome estavam em final de gestação, Eva disse ao marido:
- Vai se chamar Otávio Augusto. É um nome lindo, não é?
- Não sei não. Dois nomes fortes; o segundo até mais do que o primeiro. Augusto vai prevalecer, é dominante. E se você quer saber, com o tempo vai acabar virando Guto.
- Ah é? E Ítalo? Quando você quis porque quis colocar esse nome no menino... Tudo bem. Era o nome do seu pai, uma homenagem. Mas, aqui entre nós, Ítalo é horrível. Ítalo não vira nada, não se adapta a nenhum apelido, a nenhum diminutivo, nada. Ítalo é horrível.
Nessa ocasião quem deu o fecho à conversa foi Adão:
- Pronto! Agora vamos brigar.
E assim foi. Brigaram. Mas logo em seguida fizeram as pazes.
Dona Zula, que tinha gostado do nome Ítalo, viu ainda mais razões para gostar de Otávio Augusto. Desenvolveu então uma curiosa teoria que poderíamos chamar de teoria das vogais: A de Adão, E de Eva, I de Ítalo, O de Otávio. O nome do próximo neto ou neta teria de começar com U. Falou disso com a filha e o genro e perguntou:
- O que vocês acham?
Adão respondeu pelos dois:
- Que tal fazer uma relação de nomes começados com U. Para ser bem honesto não me ocorre nenhum. Tem Humberto, só que é com agá. E deu uma risadinha.
- Uriel. Uriel é um nome bíblico, de origem judaica, que significa a graça de Deus, a luz de Deus. É um dos sete anjos guardiões do Senhor.
- É. Verdade, mamãe. Uriel é bonito.
- Ulisses! – exclamou Adão – o herói grego. Acabei de lembrar. Acho que foi por causa desse Uriel que o Ulisses veio me salvar. Não quero ter nenhum filho santo. Uriel, ora faça-me o favor...
Eva veio em socorro da mãe:
- Pois fique sabendo que Uriel é muito mais bonito do que Ulisses.
- E se for menina? – perguntou Adão?
- Aí vamos ter que procurar um nome...
- Nome com U. Vocês duas conhecem algum? Com U?
- Precisamos ver, precisamos ver.
- Pois eu tenho um para oferecer: Úrsula. De Úrsula Andrews, aquela gos... – quase deixou escapar, mas consertou a tempo – como é mesmo o nome daquelas garotas que contracenam com o 007? Parece que é parecido com chacretes...
Eva fuzilou Adão com o olhar, mas a presença de dona Zula e esse clima de incerteza quanto a nome e sexo de filhos que nem encomendados estavam evitou que o casal brigasse. Pelo menos dessa vez.
Uriel nasceu no mesmo mês em que Otavinho fazia três anos.
Vejam como são as coisas. Para Adão, o menino Otávio Augusto fatalmente iria virar Guto, mas por ironia do destino virou foi Otavinho mesmo.
Com a chegada de Uriel eles teriam de mudar para uma casa maior. Provavelmente iriam para um pouco mais longe. Deu certo de irem para o Jabaquara onde encontraram um sobradinho na medida exata daquilo que queriam. Ficaram bem mais longe de dona Zula, que morava em Pinheiros. Mas ela não se aborreceu com isso, pelo contrário. Aquela mudança, para dona Zula, foi uma das maiores glórias depois de ter emplacado o nome Uriel no neto.
Contou para todas as amigas que as suas previsões se tinham confirmado. Convocou todas elas para um chá comemorativo, deu um jeito de colocar o Jabaquara no âmbito da Vila Mariana e, logo a seguir, comunicou a mudança de Adão e Eva para o... Paraíso.