INFÂNCIA - Papai Noel de terno na capa do disco?
Era Natal e a festa foi na casa - grande, por sinal - de um tio.
Quatro anos nas costas. Eu queria mais era me divertir com os recém-descobertos garfinhos coloridos, minúsculos, de espetar petisco. Furava a batata e levava à boca. Depois, o quadradinho de provolone e por fim o tomate em cubo da tigela de salada.
Usava várias vezes o novo brinquedo, não por ser tão guloso assim, mas pela inédita emoção de ter à mão um garfinho colorido e usá-lo, como os adultos.
Mas na hora que vi a capa de um disco, até larguei o garfinho de lado, na mesa. "Meu deus! É o Papai Noel!", pensei. "Mas está disfarçado. Ou a roupa vermelha devia estar guardada na hora da foto". Fiquei bastante tempo observando o velhinho grisalho. A franja dele parecia de plástico e brilhava como o reflexo no sol através do frasco de desinfetante amarelo. E a barba parecia nova, recém-fabricada. Bonita demais, não parecia a mesma barba que o Papai Noel do Shopping usava. Ele trajava roupas caras, de gente grande e séria. Imaginei que do mesmo jeito que havia pessoas que se vestiam de Napai Noel, o Papai Noel verdadeiro, fora de época de Natal, se vestia de "pessoa" para não ser reconhecido e "atacado" por crianças barulhentas na rua em pleno Junho, pedindo presentes.
Uma tia notou que eu, o moleque peralta, barulhento, estava quieto.
- O que foi, Gabriel? Tá quietinho...
- Tô vendo o Papai Noel.
- Onde?
- Ali, ó. No disco - a tia deu uma gargalhada gostosa.
- Mas será que é o Papai Noel?
- É ele sim! Olha o sorriso! Olha o cabelo! E a barba!
Deixei a tia lá e fui procurar o tio, dono da casa, dono da vitrola, para pedir:
- Tio! Tio! Toca o disco do Papai Noel? - ele tinha copo de uísque na mão e conversava com os familiares. No entanto, me deu atenção. Agachou-se para falar comigo.
- Papai Noel? Você trouxe o disco do Papai Noel, "zé gabrié"? (era assim que os tios me chamavam. Às vezes, chamam até hoje).
- Eu não! Nem tenho! Tô falando de um que é do senhor.
- Ué... qual?
- Vem cá. Vou te mostrar - segurei a mão do tio e levei ele para perto da pilha de discos.
- Aquele! Olha ali!
O tio também riu, igual a tia. Estranhei a gargalhada dele.
- Que foi, tio?
- Esse aí é o Papai Noel?
- É sim! Tá disfarçado! Põe o disco, tio, põe?
- Claro! Deixa só terminar este que está tocando, aí eu coloco o que você quer, tá bom? - como eu ainda não tinha aprendido a dizer "obrigado", sorri para ele, levei as mãos para o alto e gritei "êba!".
E nem brincava mais. Não conversava com ninguém. Esfregava as mãos, desarrumava o cabelo e arrumava de novo. Estava ansioso para escutar o disco do Papai Noel. Já imaginei como deveriam ser as músicas. Mentalizei "Jingle Bells", "Noite Feliz" e na faixa final do disco: só a voz do Papai Noel, com uma mensagem para as crianças, pedindo para que fossem obedientes o ano inteiro para ganhar presente.
Finalmente o disco tocou! E nada de sinos. Nada de "feliz natal", nenhum som ou melodia que lembrasse o vinte e cinco de dezembro. Escutei instrumentos típicos das outras músicas comuns, juntados a cornetas, entre outros de sopro, e um interminável e incômodo coro de lá-lá-lás. A princípio, fiquei decepcionado. Mais tarde, pensando melhor e explicando para os adultos até, justificava aquela música diferente como sendo parte do disfarce. "Se tocar música de Natal, o povo descobre que ele é o Papai Noel e aí a criançada corre atrás dele" - eu falava, imaginando-me com um chapelão alto na cabeça, portando lente e cachimbo do Sherlock Holmes.
Até hoje escuto as músicas do conjunto do "Papai Noel". Aprendi a ler, aprendi inglês. Anos mais tarde, descobri que, quando à paisana, enquanto disfarçado, Papai Noel atendia pelo nome de RAY CONNIF.
(história verídica, da minha infância)