No tempo das janelas
1. Sempre fui louco pelas janelas. Brigo por elas nos trens, nos ônibus, e até em casa. Nos aviões, as renuncio. Dou preferência às poltronas do corredor, na "certeza" de que, na hora H, o "desembarque" será mais fácil. Eis, aqui, a confissão, via internet, de um sujeito que, durante os voos, transforma-se em um emérito covarde.
2. Trago de muito longe esta mania pelas janelas. Minha mãe usava o janelão de minha casa sertaneja para, à tardinha, mostrar aos seus oito filhotes o que acontecia na cidade. Eu era o primeiro a me postar; e, por isso, chamavam-me de enxerido.
3. O cancioneiro popular não esqueceu as janelas. Entre eles, Chico Buarque de Holanda em Carolina, Januária e A banda; Tom Jobim cantando que "...da janela vê-se o Corcovado/ O Redentor, que lindo!" ; e o imortal Orestes Barbosa, em Chão de Estrelas: - "...nossas roupas comuns dependuradas/ na janela qual bandeiras agitadas."
4. Nos meus tempos de rapaz, árdego e feliz, as janelas desempenhavam um importante papel na vida dos jovens namoradores: eles tinham que freqüentá-las, antes de conquistarem um espaço no interior da casa dos seus prováveis sogros.
5. Aos vinte e poucos anos, freqüentei uma dessas janelinhas durante muitos meses.
Só depois de cumprir o enfadonho estágio probatório foi-me dado o direito de tomar um sorvete de cajá na sala de visitas da mansão da minha gentil namorada, com a qual noivei, mas não casei...
6. Tempos sisudos aqueles! O mancebo debruçava-se na janela da amada, horas a fio, em pé, sem chiar, alimentando a idéia de que valia a pena aquele sacrifício, para alcançar o mais gostoso...
7. Nas janelas a gente deixava um soneto; uma declaração de amor; ou um bilhetinho cifrado marcando um encontro no banco de um jardim; na porta de um cinema; ou no patamar da igreja, depois da novena do padroeiro.
8. Nas janelas a gente começava e terminava os namoros. E os noivados, também. Isso aconteceu comigo, idos de 1952-53. As janelas escutavam comoventes histórias de ciúmes e testemunhavam o rolar de uma lágrima dorida em cada despedida...
9. Das janelas, a gente acompanhava as procissões; assistia comícios; e via a banda passar, rumo ao coreto da pracinha, para as retretas, ansiosamente aguardadas.
10. As mexeriqueiras - geralmente mulheres condenadas a um ingrato e torturante caritó - usavam-nas para tomar conta da vida alheia. E fabricavam fofocas incríveis, rapidamente espalhadas por toda a cidade.
11. Junto às janelas, fazia-se serenatas. Nelas recostadas, as meninas, no silêncio profundo das madrugadas, ouviam belas juras de amor levadas pelos burdões e primas de violões seresteiros...
12. E pelas suas frestas, aplaudiam, discretamente, seus namorados que, baixinho, recitavam versos prenhes de lirismo; como estes de Catulo da Paixão Cearense: - "Que ela venha à janela, semi-nua,/ Para ver, nesta noite cor de prata,/ Como o Poeta se assemelha ao Cristo,/ Carregando uma cruz, em serenata."
13. As casas foram desaparecendo e os espigões surgindo. E com os espigões, os apartamentos. Os apartamentos, dizia Nelson Rodrigues, mataram as janelas. Concordo com o Anjo Pornográfico: depois dos arranha-céus, as janelas ficaram isoladas; soltas no espaço; distantes dos visinhos; longe da agitação das ruas.
14. Neste instante, escrevo esta crônica da janela do meu apartamento, no quinto andar do meu prédio. Diante dos meus olhos, o imponente mar da Pituba, na hora do crepúsculo. Lá longe singra um pequeno saveiro de velas brancas. Ele vem dos lados de Itapuã, protegido, com certeza, por Iemanjá .
Para onde ele vai, não sei.
1. Sempre fui louco pelas janelas. Brigo por elas nos trens, nos ônibus, e até em casa. Nos aviões, as renuncio. Dou preferência às poltronas do corredor, na "certeza" de que, na hora H, o "desembarque" será mais fácil. Eis, aqui, a confissão, via internet, de um sujeito que, durante os voos, transforma-se em um emérito covarde.
2. Trago de muito longe esta mania pelas janelas. Minha mãe usava o janelão de minha casa sertaneja para, à tardinha, mostrar aos seus oito filhotes o que acontecia na cidade. Eu era o primeiro a me postar; e, por isso, chamavam-me de enxerido.
3. O cancioneiro popular não esqueceu as janelas. Entre eles, Chico Buarque de Holanda em Carolina, Januária e A banda; Tom Jobim cantando que "...da janela vê-se o Corcovado/ O Redentor, que lindo!" ; e o imortal Orestes Barbosa, em Chão de Estrelas: - "...nossas roupas comuns dependuradas/ na janela qual bandeiras agitadas."
4. Nos meus tempos de rapaz, árdego e feliz, as janelas desempenhavam um importante papel na vida dos jovens namoradores: eles tinham que freqüentá-las, antes de conquistarem um espaço no interior da casa dos seus prováveis sogros.
5. Aos vinte e poucos anos, freqüentei uma dessas janelinhas durante muitos meses.
Só depois de cumprir o enfadonho estágio probatório foi-me dado o direito de tomar um sorvete de cajá na sala de visitas da mansão da minha gentil namorada, com a qual noivei, mas não casei...
6. Tempos sisudos aqueles! O mancebo debruçava-se na janela da amada, horas a fio, em pé, sem chiar, alimentando a idéia de que valia a pena aquele sacrifício, para alcançar o mais gostoso...
7. Nas janelas a gente deixava um soneto; uma declaração de amor; ou um bilhetinho cifrado marcando um encontro no banco de um jardim; na porta de um cinema; ou no patamar da igreja, depois da novena do padroeiro.
8. Nas janelas a gente começava e terminava os namoros. E os noivados, também. Isso aconteceu comigo, idos de 1952-53. As janelas escutavam comoventes histórias de ciúmes e testemunhavam o rolar de uma lágrima dorida em cada despedida...
9. Das janelas, a gente acompanhava as procissões; assistia comícios; e via a banda passar, rumo ao coreto da pracinha, para as retretas, ansiosamente aguardadas.
10. As mexeriqueiras - geralmente mulheres condenadas a um ingrato e torturante caritó - usavam-nas para tomar conta da vida alheia. E fabricavam fofocas incríveis, rapidamente espalhadas por toda a cidade.
11. Junto às janelas, fazia-se serenatas. Nelas recostadas, as meninas, no silêncio profundo das madrugadas, ouviam belas juras de amor levadas pelos burdões e primas de violões seresteiros...
12. E pelas suas frestas, aplaudiam, discretamente, seus namorados que, baixinho, recitavam versos prenhes de lirismo; como estes de Catulo da Paixão Cearense: - "Que ela venha à janela, semi-nua,/ Para ver, nesta noite cor de prata,/ Como o Poeta se assemelha ao Cristo,/ Carregando uma cruz, em serenata."
13. As casas foram desaparecendo e os espigões surgindo. E com os espigões, os apartamentos. Os apartamentos, dizia Nelson Rodrigues, mataram as janelas. Concordo com o Anjo Pornográfico: depois dos arranha-céus, as janelas ficaram isoladas; soltas no espaço; distantes dos visinhos; longe da agitação das ruas.
14. Neste instante, escrevo esta crônica da janela do meu apartamento, no quinto andar do meu prédio. Diante dos meus olhos, o imponente mar da Pituba, na hora do crepúsculo. Lá longe singra um pequeno saveiro de velas brancas. Ele vem dos lados de Itapuã, protegido, com certeza, por Iemanjá .
Para onde ele vai, não sei.