A CAVALHADA – DAS CRUZADAS AO CARNAVAL EM SANTANA DO JACARÉ
Das Cruzadas Medievais na Europa, originaram-se os “ideais de Cavalaria” que culminaram, muito a posteriori, nos folguedos que hoje chamamos de Cavalhadas que representam a guerra dos Cristãos contra os Mouros (Sarracenos) após estes últimos invadirem os territórios da Terra Santa e também da Península Ibérica. Envolto nos acontecimentos históricos, muitos fatos narrados se tornaram lendas, com acontecimentos fantásticos, próprio do que é legendário. A título de exemplo, tivemos o caso da tomada do Reino de Valencia, por Rodrigo Diaz de Vivar, eternizado com a alcunha de El Cid, o grande herói da Reconquista. Logo após sua morte, em princípios do século XII, seu nome se confundia com a lenda, e os textos de origem cristão viam em El Cid um modelo a ser imitado.
Outro importante componente mítico, foi a difusão da lenda de Carlos Magno, lenda que mais tem ligação com a constituição dos folguedos das cavalhadas na Europa e posteriormente no Brasil. Segundo a lenda, Carlos Magno e os dozes pares da França obtiveram várias conquistas contra os Mouros (Sarracenos), até a morte de Rolando e Olivério na Batalha Roncesvale, tema central da mais conhecida canção medieval sobre as cruzadas: a “Chanson de Rolando” (Canção de Rolando). Tornando-se épico, a canção foi colocada por escrito entre 1087 e 1090 pelo escritor anglo-normando Turoldo. A narrativa épica, trata dos feitos de Rolando (ou Roldão), que lutou até a morte no desfiladeiro de Roncesvales. Após o desastre, o imperador retornando ao cenário da batalha, aniquila os inimigos e manda batizar os sobreviventes.
Este episódio na sua maioria lendário, uma vez que o próprio Carlos Magno morreu no ano de 814 , ficou registrado na memória dos ocidentais como o exemplo da grande vitória cristã contra os infiéis sarracenos (mouros). Esta história, por muitos cantada, expressava muito bem o clima da “Guerra Santa”: Rolando e seus companheiros tidos como heróis mártires, os mouros sarracenos como os detestáveis e satânicos inimigos da Fé Cristã, e Carlos Magno como implacável defensor da fé e vencedor absoluto.
Estas narrativas foram tratadas de “Ideário Carolíngio” e ficaram conhecidas por todos os rincões europeus (França, Inglaterra, Itália, Império Germânico, Escandinávia e Leste Europeu). Este ideário também desempenhou papeis nas tradições culturais da Península Ibérica, e como disse Macedo (2000), a começar pelo fato de ter sido ali o cenário do mito fundador desta epopeia. A grande difusão de romances de cavalaria na península Ibérica referentes ao Ciclo Carolíngio, data do fim do século XV. Sendo os personagens mais conhecidos Rolando, Olivério e Carlos Magno.
A reelaboração do texto e sua temática sofreu sensível alteração em 1525 segundo Macedo (2000), quando o espanhol Nicolau de Piemonte escreveu a “Historia del Emperador Carlo magno y de los Pares de Francia, y de la cruda batalla que hubo Oliveiros com Fierabras, Rey de Alexandria, hijo del grande Almirante Balan”, com base na tradução de uma obra francesa anterior. Acredito que o próprio Cervantes tenha sido influenciado por este ideário ao escrever Dom Quixote satirizando as obras de cavalaria tão comuns em sua época.
Nos séculos que se seguiram, esse ideário correu o mundo, sendo introduzido em territórios de colonização ibérica (Espanha e Portugal) situados na África, Ásia e América Latina. Persiste nas ilhas de Açores e Madeira, São Tomé e Príncipe, em Goa (na Índia), na Argentina, México, Peru e Nicarágua.
O livro de Nicolau de Piemonte teve ampla aceitação, até ser adaptado pelo português Jerônimo Moreira de Carvalho entre 1728 e 1737, e depois ampliado por escritor anônimo. No Brasil, recebeu diversas versões e cópias impressas desde o século XIX. Ao que tudo indica, a temática das cavalhadas encontra-se inscrita justamente em sua segunda parte. É nela que se pode ler o confronto entre os exércitos Franco e Mouro (ou turco) com a derrota dos infiéis e a conversão da princesa.
A História do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de Franças, segundo Câmara Cascudo foi a obra mais conhecida pelo povo brasileiro do interior até pelo menos o princípio do século XX. De baixa popularidade nos centros urbanos onde a cultura livresca era mais acentuada, este livro manteve seu domínio nas fazendas de gado, café, fumo, engenhos de açúcar e outras, onde era na maioria das vezes, o único exemplar impresso existente em casa. Macedo (2000) afirma que tal exemplar motivava sessões de leitura em voz alta, permitindo o seu aprendizado inclusive por analfabetos, que a aprendiam de cor: “nenhum sertanejo ignorava as façanhas dos Pares ou a imponência do Imperador da barba florida”. Compreende-se que, tenha se cristalizado nas tradições populares das comunidades rurais brasileiras até o presente, exercendo verdadeiro fascínio entre os homens do campo, ganhando corpo em seus festejos e em textos de literatura de cordel.
No Brasil nos tempos antigos, as Cavalhadas, constituíam um complemento indispensável nas festas religiosas, políticas e guerreiras, e uma vez introduzidas em nosso país, aqui se popularizaram muito, sendo bastante praticadas desde o século 17 até ao século 19. Consistiam numa espécie de torneio no qual um número par de cavaleiros, geralmente doze de cada partido, mouro ou cristão, travava guerras simuladas acompanhadas de várias provas de equitação, terminando tudo, após propostas de paz, com o aprisionamento dos mouros.
É costume dizer que essa representação foi introduzida no Brasil por missionários jesuítas que procuravam catequizar os índios e escravos mostrando-lhes o poder da fé cristã. A representação dramática era, na verdade, uma espécie de torneio em que os participantes formavam dois grupos de doze cavaleiros, os de um lado vestidos de azul, representando os cristãos, e os do outro de vermelho, fazendo o papel de mouros, todos executando manobras em que demonstravam sua grande perícia no comando dos animais em que estavam montados. Ao final do combate, venciam os cristãos, que aproveitavam a oportunidade e convertiam seus adversários ao cristianismo. Depois dessa época, em cada lugar foi introduzido pequenas modificações determinadas por esse ou aquele motivo, mas a essência do festejo com fundamentos nas cruzadas medievais permaneceu a mesma.
A CAVALHADA EM SANTANA DO JACARÉ
Em princípios do século XX, quando Santana ainda cumpria seu papel de povoado, o Senhor Capitão Saturnino Antônio Cardoso foi presenteado pelo Governador do Rio de Janeiro com um livro sobre empreitada à terra Santa de Carlos Magno e os doze pares da França. Acreditamos ser este livro um exemplar da famosa obra do português Jerônimo Moreira de Carvalho. Inspirado pela leitura da obra, Capitão Saturnino juntamente com Álvaro batista Cardoso, Milico Cambraia, Pe. Francisco Correia e João Alves Duca fundaram o folguedo da Cavalhada em terras santanenses.
Em uma sala de aula, aos cavaleiros que se interessaram em tomar parte da nova atividade equestre, foi ministrada a forma como se dariam as apresentações do então “Carnaval de corrida”, que teve sua inauguração em 25 de fevereiro de 1910 . Seus fundadores não imaginavam a dimensão que a festa alcançaria, vindo a sobreviver por mais de um século, mesmo enfrentando dificuldades e falta de apoio. Certamente se manteve muito mais pelo amor de seus integrantes, que honravam com orgulho o cargo e a missão da cavalhada, do que pelo apoio do poder público.
Milico Cambraia sucedeu Saturnino na diretoria por muitos e muitos anos e foi ele o criador da Alvorada da Cavalhada, realizada aos sábados de Carnaval (véspera do primeiro dia), onde inicialmente os cavaleiros percorriam ao alvorecer as ruas do povoado encerrando com belo café em sua residência.
As primeiras apresentações aconteceram no então Largo do Rosário, hoje Praça João Alves Duca, o coração do povoado. Posteriormente, com urbanização da Praça no ano de 1965, as apresentações foram transferidas para um terreno, onde hoje se encontra instalada a Praça de Esportes Dr. Ozires Freitas, atrás da Igreja Matriz. Depois ainda, onde hoje está construída a Igreja “Santuário” de N. Sra. Aparecida, próximo ao Bairro Sevilha. Na época da construção da rodovia que liga Santana à Fernão Dias, este terreno foi utilizado pela Construtora da mesma, levando as apresentações da Cavalhada para o campo de futebol próximo às margens do Rio Jacaré. Atualmente (2020) as apresentações acontecem em espaço adquirido pela prefeitura no final do Bairro Sevilha. E antes disso, também foi utilizado um espaço às margens do Rio Jacaré, em área gentilmente cedida pelo Senhor José Luís proprietário da mineradora, que explora as areias do rio, próximo ao desativado matadouro municipal.
Apresentadas por vinte quatro cavaleiros homens , sendo doze do lado dos Mouros e os outros doze do lado dos Cristãos, a cavalhada empolga a todos que dela participam, envolvendo um bom número de pessoas, entre diretoria, banda de música, serventes para cada cavaleiro, operários para a montagem do palanque e ainda o material necessário para as apresentações; também há as jovens amazonas a representar a princesa e a rainha da cavalhada.
Os cavaleiros utilizam uma fantasia decorada com lantejoulas, composta de uma bermuda, colete, máscara e chapéu, vestidos sobre calça e camisa de manga comprida com os punhos decorados, tal qual a fantasia. As cores mais comuns são o preto, o azul e o vermelho, mas sendo encontrado também verde e o prata dentre outras. O colete tem sempre um desenho nas costas, a chamar a atenção por sua arte e alusão a características do cavaleiro. A máscara é feita de uma espécie de tela, com estampas representando semblantes viris, dando um ar de força e masculinidade, sendo complementada com um tecido preto a formar um capuz. O Chapéu, revestido do mesmo tecido da fantasia, tem um dos lados da aba preso à copa, todo decorado também com lantejoulas e algumas penas coloridas, e tem ainda um tecido negro cortado em tiras na parte de traz. O cavalo também é decorado com coroa de flores ao pescoço, pequenos sinetes a soar em galope, rabo com tecidos florais e fitas coloridas e a sela também com detalhes coloridos. Dividida em duas partes, as apresentações se compõe de modalidades equestres. A primeira parte são as modalidades chamadas, em Santana, de “Carreiras”, e num segundo momento é feita, a sempre tão esperada, disputa da tirada da Bandeira Nacional e da argolinha. Encantando santanenses e visitantes, a Cavalhada tornou-se um momento mágico e lúdico em meio às atividades carnavalescas. À noite do terceiro e último dia, sem máscaras e acompanhados de suas belas damas, os cavaleiros dançam a chamada “Contradança” ao som da banda de música. Com esse ato, encerram-se as festividades “cavaleirísticas”.
“Eu entrei na dança para ver como se dança eu entrei na dança eu não sei dançar, olha o pé, pé, pé, olha mão, mão, mão. Vira roda moreninha caranguejo peixe é...”
Gleisson Klebert de Melo, Passos/MG 08 de Julho de 2021
FONTES CONSULTADAS
- MACEDO, José Rivair. Mouros e Cristãos: a ritualização da conquista no velho e no novo mundo. Publicado ALVES, Francisco das Neves. (organização) Brasil 2000 – Quinhentos anos do processo colonizatório: continuidades e rupturas. Rio Grande, RS: Fundação Universidade Federal do Rio Grande – FURG, 2000, pp. 9-28.
- DOSSIÊ SOBRE A CAVALHADA. Prefeitura Municipal de Santana do Jacaré.
- LEOCÁDIO, Maria Imaculada de Sena. O Livro da Imaculada, Manuscritos de pesquisas da Biblioteca da Escola Municipal João Alves Duca, 1991.
- CASCUDO, Luís da Câmara, Informação sobre a História do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de França. In: Cinco livros do povo. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1953, p. 441.