Um Lance Estranho
Não fazia muito sentido. O dia foi lindo. Um mimo dos deuses, talvez extenuados de tanto castigar a cidade com pesadas chuvas. Mas o azar aparece. É um corvo pendurado no ombro. É tão presente quanto uma sombra. Ele haveria de aparecer. Mas tudo bem. Conversávamos sobre negócios. Tentávamos conversar sobre negócios. Uma conversa que poderia ser acabada em cinco minutos durava vinte e cinco. Muita coisa passando na avenida. Na rua, nas calçadas. Com seus cabelos esvoaçantes, seios balouçantes, pernas compridas, com seus dreadlocks e tatuagens, piercings e manias, tiques e sobrancelhas, unhas vermelhas, sandálias de dedo, calor emanando, ventríloquos seres que nos manipulam os nervos, fazem-nos de marionetes e, naquela tarde calorenta onde o sol se escondia por trás dos prédios, estavam atacando a nossa dislexia de forma fulminante. Belezinhas passeando com cachorrinhos, indo ao cinema, dondocas intocáveis, perninhas cruzadas em quiosques de chá gelado, essas coisas. Conversávamos sobre negócios e as cervejas iam aparecendo. A aquisição de franquias ou manter-se na matriz? Uma papelada mal resolvida que surgiu do passado e estava dando dores de cabeça, mexendo na contabilidade da firma. E de um lado, lucros. Ações ordinárias. A cerveja rolava. Tentamos fazer algo e parar de falar de negócios. Duas delas apareceram. Olhavam. Em outras épocas, daríamos um braço por uma oportunidade de conversa. Estavam na calçada mais suja e clichê de todas e olhavam diretamente. Acenaram pra mim. Um indicador apontou pra mim como quem diz "ei, é você mesmo!". Dei de ombros e fui. Cumprimentei. Perguntaram do meu sócio. Convidei-o. Sentamo-nos no chão, mesmo, em cima da nossa ferramenta de trabalho. A confusão era tangível entre nós. Que diabos estava acontecendo? Queriam conversar. Mas falaram para puxarmos assunto. Dado o contexto da coisa, não havia assunto. Estávamos surpresos, realmente surpresos. Ótimas pernas, lábios, cabelo, rosto, seios, voz. Tudo, tudo aparentemente no lugar. E nós lá, convidados, os mais deslocados, nada no lugar, no bolso, no futuro. Um vazio imenso, escuro, inescrutável, era o que nos aguardava. No nosso túnel, não havia luz no fim. Passamos da luz, que estava apagada. Luz talvez seja sorte. Inferno, a preguiça chega. Ela nunca tarde e nunca falha. É uma peste, é uma certeza. É necessária. É o aviso de que não estamos prontos para o que quer que seja. E o que quer que seja normalmente é indisposição. Ponto para a preguiça. Levantamo-nos os quatro. Havia algo a ser dito. Uma troca de contatos. Ninguém fez menção de pedir algum. Foram embora. Ficamos olhando. Alguma coisa estava errada. Ou certa. Ou finalmente certa. Ou extremamente tão errada que a indiferença se fez presente e manipuladora da situação. Continuamos olhando suas curvas, o requebrado, os cabelos negros sendo acariciados e parcamente desarrumados pelo vento. Demos de ombros, pegamos nossas coisas e descemos a rua. Bebemos mais uma cerveja num balcão de bar que já me foi muito útil e nos demos conta de que haviamos feito besteira em não fazer nada. Brindamos a isso. No ônibus, ao mesmo tempo, chegamos à conclusão de que o que foi feito (o nada que foi feito) foi o melhor a ser feito. Ficamos em paz com isso. Talvez fosse a viadagem chegando. E foi o fim de um lindo dia.
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