Palavras nascidas das chuvas
Palavras nascidas das chuvas
Da janela vejo as gotas brancas que caem sem pressa pelas ruas de Belém. Chuva, que sem muito barulho, meio enevoada, com gosto de preguiça, vai aos pouquinhos banhando as ruas inseguras e os homens sem guarda-chuvas. Do lado de dentro o clima está ameno, bom para ler, bom para escrever, para o café ou chocolate, mas lá fora há mães que não têm guarda-chuvas, como aquela que bateu na minha porta um dia. Em seus braços, a mulher trazia uma criança de quase um ano de vida, que aparentava quase um mês. Bateu na porta tão naturalmente como se fosse me oferecer um produto de limpeza. Causou-me espanto aquela imagem, seu corpo quase sem carnes e as rugas profundas denunciavam a miséria de uma vida sem cor, como eram suas roupas. Uma das mãos carregava um saco com aparência de ter sido arrancado do lixo enquanto a outra tentava aconchegar o filho, tão pequeno, que se escondia em meio a alguns trapos entre o braço e os seios daquele corpo, que apesar do que eu via, era materno.
Bateu na porta da minha casa aquela mulher vinda não se sabe de que rua. A passos lentos, sem pressa de desfilar sua miséria, vagou sem destino certo, e por algum motivo, estava diante de mim. Olhou-me com serenidade e pediu um trocado, alguma moeda que não me servisse mais. As moedas sempre tem serventia, ainda que sejam para escolher destinos. Teria aquela mulher tido uma moeda para jogar para o alto e escolher seu destino? Usaria a moeda que eu lhe daria para escolher o destino de seu filho? Não tenho essas respostas, só muitas perguntas. E uma delas, a que mais me persegue: quem será o pai daquela criança? Terá sido ela vítima do Arante? Seria filho do acaso em uma noite fria de chuva fina numa rua incerta, ou quem sabe fruto de um único lampejo de amor?
É provável que a mulher não tivesse essa resposta para calar meus anseios, então peguei a bolsa, tirei algumas moedas e coloquei em suas mãos trêmulas. Talvez, em um dia qualquer de chuva ou sol uma daquelas moedas decida o destino daquela criança. Nos dias de chuva, lembro-me desses dois personagens que um dia bateram na minha porta. Não sei se para eles a chuva é boa ou ruim. Pode até ser que as águas vindas do alto mate a sede dos dois ou lave seus corpos impregnados com o cheiro de lixo, quem sabe façam da chuva brinquedo, transformando gotas de água em porções mágicas e enquanto estiverem molhados, sejam capazes de transformar a solidão das ruas chuvosas em quintal, onde se brinca de pega- pega.
Quantas mães estão a vagar pelas ruas sem guarda-chuvas para protegerem seus pequeninos dos dias chuvosos, que de dentro de minha casa tem sabor de nostalgia, e trás sensações vividas na infância. Não sei se quero que a chuva continue para que o quintal seja mais extenso ou se penso na umidade que ficará quando ela se for e o quintal voltar a ser povoado de gente que não precisa de guarda-chuva. Quando a chuva se for, onde estará aquela mulher? Terá como secar seu filho? Tem corpo tão franzino, a coitada, para emprestar seu calor a ele. E as esquinas? A chuva trás o lixo jogado pelas janelas dos apartamentos, dos carros que se acumulam nas calçadas que serão divididas à noite pelas mães de pouco corpo, pelos filhos sem direito a escolha de seus destinos e pelos ratos que agradecem aos homens, que não precisam de guarda-chuva, pelo banquete de seus restos jogados sem preocupação.