UMA HISTÓRIA DE LETRAMENTO
Lêda Torre
Primeiro descrevendo um pouco a minha longínqua cidade, no médio sertão maranhense, uma cidade bonitinha, por assim dizer, COLINAS, cidade de clima ameno, quente e úmido de dia e frio, bem gostoso de noite; cidade antes agrícola, hoje, mais funcionalista, digo, a sua economia maior é oriunda da renda do funcionalismo público, comércio, feirantes, dentre outros, rodeada de colinas, localizada entre morros, banhada pelo sinuoso e um dia bastante piscoso o Rio Itapecuru, hoje quase um moribundo, em avançado estágio precário de sobrevivência, provocado inconsequentemente pelas mãos predatórias do homem, que em sua infinita ignorância, enche-o de lixo, de materiais descartáveis e degradantes; animais mortos, esgotos residenciais, poluindo um rio que atende não só algumas cidades do estado, em seu longo e pesaroso percurso, mas todo um estado, onde ele abrange, foi palco de meus enredos de vida.
Após descrever um pouco de minha apaixonante cidade, revisito minha infância, já lembrado de novo em outra crônica, minhas lembranças de letramento, tanto português, quanto matemática e cultura geral. Como sou a filha segunda de uma prole de oito irmãos que, por sinal sou a mais velha das mulheres, sempre fui incumbida pela minha mãe, de dirigir os afazeres da casa, e conduzir aos irmãos mais novos, para as tarefas escolares e domésticas, apesar de ser também ainda outra criança, pré-adolescente, mas dava conta do recado, fazia a parte administrativa, diga-se assim, quando as circunstâncias permitiam.
Tarefas variadas me eram dadas; como um dos exemplos do que estou a relatar, uma das tarefas que eu executava eximiamente, era a lavagem de roupas e nas compras da casa. Quando a lavadeira chegava bem cedo, umas sete da manhã mais ou menos, sempre três vezes na semana, ou outras vezes a oficineira vinha à “boquinha da noite”, véspera do dever, para acertarmos a quantidade de peças de roupas e por espécie, diga-se de passagem, com seus respectivos valores unitários, numa lista, a cada vez que esse serviço fosse feito.
Vale ressaltar, o que até me chama atenção, nisso tudo, é que aquelas lavadeiras, faxineiras ou cozinheiras, eram totalmente analfabetas, mas letradas, sabiam o preço das coisas, davam seu preço nas prestações de seus serviços e ninguém as enrolava de jeito nenhum, nos orientando como elas queriam, coisas assim. Cada peça de roupa tinha seu valor, e ali eu listava-as com seus preços unitários, somava e dava-lhes o total, enquanto as mesmas, de cabeça, já me dava seu resultado, o que eu achava impressionante tamanha precisão. Pois bem, aprendi muito com essas profissionais.
Como parte do meu aprendizado, outro trecho do letramento de minha jornada de vida, foi o que de interessante eu fiz bastante; redigia cartas para essas pessoas sem leitura, que me procuravam para fazê-las, pois sempre gostei muito de ler e de escrever, por isso a procura. Redigia a carta, lia a resposta quando chegava dos parentes destas pessoas, respondia de novo e assim eu fazia igual à Dora do filme Central do Brasil, só era diferente porque eu não cobrava nada, gostava mesmo era de ajudar. Tudo isso me ajudou muito no meu aperfeiçoamento para a vida toda. Lembro-me muito bem dessas valiosas contribuições.
Como estudei numa escola pública, mas de pedagogia renovada, tive a grande experiência de viver mais esses letramentos; um deles foi o do exercício da democracia, quando participei da milícia estudantil, uma espécie de escoteiro mirim, tinha aulas em contra turno, nos fins de semana, participava da ordem na escola, acampávamos periodicamente, como parte da prática, acompanhados de um grupo de bons professores de Educação Física; participei da vivência de grêmios, de eleições simuladas na nossa escola; cursei o Magistério na Escola Normal, cujo estágio de três anos do magistério, se dava numa escolinha anexa de aplicação, em que realmente se aprendia ser professora.
Fizemos muitas pesquisas nos Laboratórios de Ciências, Laboratório de Línguas Francesa e Inglesa, laboratórios de História e Geografia, onde só se estudava essas disciplinas com Atlas, mapas, Globos, enciclopédias, etc; em Ciências, Física e Química, disciplinas do curso Normal, que faziam parte da estrutura curricular da época, vivenciávamos grandes experimentos, aulas que jamais esqueci.
Além das rotinas domésticas, as escolares me prepararam a minha base, o que agradeço muito a Deus, por ter passado por todas aquelas etapas, muito enriquecedoras por sinal, trabalhos outros de relevância também. Na nossa escola o CINEC, acontecia todo ano os festivais no mês de junho, eventos que durante uma semana era o ponto máximo daquela juventude que tinha um veio artístico, como eu com minhas tão apaixonadas poesias de autores clássicos que eu adorava decorar e recitar. Esta foi outra situação de letramento que vivi.
Após aqueles bons trabalhos, maravilhosas noites, após um dia de debates, estudos, mesas redondas, plenárias, de temáticas da época, atualizados, naquela saudosa semana anual que aconteciam os chamados “Ciclos de Estudos”, cujos convidados para aqueles seminários, sempre vinham de fora, da capital, por exemplo, como o poeta e escritor Jomar Moraes, Reginaldo Teles, se não me engano, era jornalista e escritor; enfim, foram vários os convidados, que iam para minha cidade participar daqueles eventos. Lembro-me bem que tudo aquilo fora o que chamamos hoje de letramentos.
Na verdade, outras situações apesar de termos vivenciado experiências em plena ditadura militar, e naquele contexto histórico, social, educacional e político, o estilo das escolas era de regime disciplinar do sistema militar. Hoje a história condena muito o regime, não sei se é por não me lembrar de muita coisa da época, e por desconhecer verdadeiramente o regime ditador, é que eu não o condeno tudo não; acho por um lado, tiveram suas vantagens; a ordem na sociedade, e essa violência desenfreada que o progresso trouxe, não chegava a tantos índices absurdos em crimes hediondos, em falta de segurança na sua própria casa, em falta de ordem e disciplina na própria sociedade, isso, os militares conseguiam contornar.
Mesmo sabendo que no final de tudo isso, a corrupção sempre foi latente e real, a repressão era tamanha, que depois de passados aqueles anos duros, segundo os historiadores e pessoas adultas na época e, que vivem até hoje e viveram tudo aquilo, foi um regime que torturou muitos inocentes, e existem desaparecidos até então, cujas famílias jamais irão saber dos seus paradeiros, e consomem essa angústia, de forma infinita e degradante.
Pois é, esta parte que narrei até aqui, foram relevantes na minha formação como leitora, de profissão professora e escritora que me autonomeio assim; essa é uma história de letramento. Antes se chamava meramente de vivências, senso comum, etc. Hoje é letramento.
___________São Luis, 13 de janeiro de 2011________