REMENDOS DO TEMPO

...então, olhei para o chão e esperançosa eu quis remendar aquela secular história...

Não era a primeira vez que eu adentrava aquele pequeno ambiente.

Eu já havia estado lá por algumas vezes, porém apenas naquela tomei o cuidado de observá-lo melhor, a toda sua história ali contada em cada detalhe dos móveis e objetos, bem como ao seu pequeno Hall de acesso àquela sala de estar de dona Maga, cujo átrio era decorado com um pequeno aparador antigo de jacarandá maciço, brilhante como se fosse novo, cheiroso, aonde algumas peças, que me pareciam adquiridas em antiquário, estavam caprichosamente ali repousadas, partes vibrantes daquela energética decoração, muitas delas colocadas sobre primorosas toalhinhas de linho branco, arrematadas por engomada renda artesanal de tom azul pastel.

Logo que ali entrei lembro-me que suavemente levei meus dedos a um cachepot de porcelana biscuit, daquelas delicadas confecções inglesas do final do século retrasado que sentem até a nossa respiração.

Seu corpo delicado que repousava numa daquelas toalhinhas não tinha mais que alguns centímetros de diâmetro, confeccionado numa porcelana dum branco claro e algo envelhecido, quase dum bege pastel, nele trazia cravejadas algumas flores em rococó de leve colorido, num trabalho em alto relevo artístico.

Bati meus olhos naquela beleza antiga e por frações de segundos senti nos dedos toda a suavidade da sua delicada anatomia.

Lá fora chovia torrencialmente e assim que lá entrei procurei algo para depositar meu guarda- chuva que pingava muito e meu pequeno chapéu que fazia parte da minha bagagem de mão.

Dona Maga, uma simpática senhora octogenária, me recebeu com a mesma alegria de sempre, a acomodar minha mala no corredor e meu chapéu sobre o seu pequeno aparador.

Quase a meia noite daquele dia chuvoso, serviu-me um chá de hibisco, já me informando todas as sua qualidades medicinais.

"Precisa repousar bem, filha... " me disse ela com a mesma gentileza de sempre.

Contei-lhe os detalhes da viagem, provei do seu chá com alguns cookies de aveia integral e fui repousar sob o barulho da chuva que parecia chover do céu sobre a Terra toda.

Na manhã seguinte me despedi de dona Maga a mais uma vez observar aquela antiga decoração que tanto falava comigo.

Peguei meu chapéu e num pequeno lapso de tempo, senti que sob ele algo se deslocara no móvel encerado em direção ao chão.

Lá estava explícito mais um destino, o do belíssimo cachepot secular de porcelana inglesa que acabara de deslizar sob a tração da minha mão a se esfacelar no chão.

Não acreditei no que via e, de fato, fiquei muito inconsolável.

Como uma história tão antiga se esfacelaria em segundos?

"Ora ora, tudo se vai minha filha, inclusive nós, tudo no seu devido tempo!"- me consolou placidamente a sabedoria da dona Maga.

No intuito de repô-la, lhe indaguei aonde havia obtido aquela peça decorativa e ela me informou que a havia herdado do espólio de sua mãe.

Fiquei mais inconsolável ainda. Eu e aquela porcelana inglesa ali estávamos igualmente refém do tempo.

Então, olhei para o chão e atônita entendi que jamais remendaria os esfacelados fragmentos daquela tão delicada história.

(Verídico)