La Vie

No sexto andar, Marília continua desfilando de calcinha pela sala. John está mesmerizado assistindo ao desfile, com meio copo de vinho numa mão e um cigarro pendendo entre o dedo médio e o indicador da outra.

Phil está na internet conversando com uma canadense pelo messenger. A janela pisca e ele sorri. Levanta, vai até a geladeira e abre outra cerveja. Responde alguma coisa, manda algumas risadas e dá uma talagada. Vai até a janela e olha a rua, doze andares abaixo.

Moacir abre o portão da garagem e cumprimenta o morador com um meneio de cabeça. Assim que o portão fecha ele volta a atenção para o último capítulo da novela. É sexta-feira, no sábado tem a reprise, mas ele vai jantar fora com a esposa, Ruth. Abre o portão novamente e perde um diálogo crucial da trama.

Do lado de fora, na rua, Matheus passa apressado, sendo fustigado pelos primeiros pingos de uma forte chuva que está por vir. Abraça uma sacola de papelão tentando protegê-la da umidade. Dentro dela, algumas peças de roupas que usará numa importante entrevista de emprego na segunda-feira. Ele está otimista com as perspectivas que o emprego proporciona. Aperta o passo.

Em algum albergue do Centro, algum vagabundo sujo reclama com os espíritos. Balbucia coisas ininteligíveis e em seguida alterca em voz alta com o nada. Os outros mandam ele calar a boca. Ele cala. Enfia-se num sobretudo imundo, deita em posição fetal e treme de frio.

Mário guia o ônibus com destreza pelas ruas apinhadas de caminhões de frutas, legumes e verduras; ruas adjacentes ao Mercado Municipal. Vez ou outra tem que parar para algum carregador de laranjas atravessar a rua. José, o cobrador, cochila com uma bandeira de time de futebol ao fundo. Clemente sentou no banco alto. Está com a cabeça encostada no vidro, observando a rua. Pensa que as coisas poderiam estar piores pra ele. Vê uma família num comércio de esquina, sentados numa roda depenando sabugos de milho. Uma panela enorme faz a frente do comércio. Curau, suco, pamonha, milho assado, cozido. Acaba cochilando.

Tiago entra no carro preocupado. Estava um pouco atrasado para a sessão de tatuagem. Riscaria o braço esquerdo numa tatuagem que compreenderia toda a extensão do ombro ao pulso. Não se preocupava com o mercado de trabalho. Não precisava trabalhar. Sua preocupação era montar logo sua banda. Era viajar pra Disney. Era comprar um Mac novinho em folha. Era beber todas nas festas. Era sair de segunda à segunda e ganhar mais e mais seguidores no twitter.

Rafael está no aeroporto, na fila do check-in. Está nervoso. É a sua primeira vez. Tanto dentro do avião, como numa situação complicada em que seus impulsos o colocaram. Era sempre assim, não pensava muito antes de agir. Quando pensava demais, nada fazia. E nada fazendo, sucumbia a acessos de tédio profundo. E estando anestesiado no tédio profundo, ficava deprimido. E deprimido, ficava com preguiça. E com preguiça beirava a loucura. Decidiu que pensar não era o seu forte e comprou umas passagens aéreas num site, numa promoção que achou irresistível. Tinha a grana pra passar uma semana num local onde não conhecia ninguém. Seu vôo sairia dali quinze minutos. Sua bexiga estava cheia. Foi ao banheiro esvaziá-la. Aquele dinheiro acabaria e então ele não teria mais nem meia pataca furada. Voltaria e arranjaria outro emprego. Foi pra fila do embarque.

A vida é isso mesmo.

Ignite - Live For Better Days

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 13/01/2011
Código do texto: T2726076
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