A ROUPA DA MÃE VELHA
Vou compartilhar com você um segredo, mas é preciso que você me prometa que ele só vai ficar entre a gente, pois tem pessoa, nesse mundo, que se assusta fácil e se não escutar ou ler sobre esse segredo direito, pode até achar que a visão que eu tive é obra do "coisa-ruim"; e por mais medo que eu tive, e tive muito medo, tudo do que eu me recordo é o que eu vou lhe contar agora: Eu vi a "Mãe Velha"!
Ela se revelou para mim e se eu ainda consigo lembrar disso, deve ser porque ela me deixou, ao menos, manter parte da lembrança; se bem que essa memória pode ter sido distorcida por símbolos antigos inebriados pela minha fé em qualquer coisa; daí, já de ínicio, fica o meu sincero pedido de desculpas, se por alguma aventura, você for conduzido a acreditar em algo do que eu acredito; a minha esperança é que você, leitor seletivo e inteligente, possa usar o seu discernimento para ir além dos meus escritos, ler nas entrelinhas o que se está sendo dito e os revista com os seus próprios símbolos, porém, peço que mantenha, ao menos, o respeito pela idéia original, esse arquétipo da "Mãe Velha", a Vó, a Preta-Véia, Mata Kali Jai Mata, Nanâ Buroquê, seja qual for o nome que você dê...
Eu, talvez em voo, talvez em sonho, lembro ainda que a minha consciência escapuliu da minha mente e foi parar bem distante, no meio de uma floresta, dar de cara com uma cabana de madeira, donde uma fumaça saia da chaminé, e os cheiro das folhas da mata se misturava com um cheiro de café. O cheiro de algo tão forte me deu conta que eu não estava pelado de corpo, e logo em seguida, o som das folhas sendo pisadas, denunciava que eu estava vestido com alguma espécie de corpo, que me permitia também ouvir o canto das cigarras, os grilos e o piado da "Mãe da Noite", um pássaro do cerrado brasileiro com fama de bruxa. Confesso que fiquei com medo, deu vontade de correr; mas ao mesmo tempo, lembrei que tinha ido parar naquelas bandas por algum motivo; daí, criei coragem e bati na porta, e a porta rangente se abriu e vi, lá dentro sentada, uma velhinha, cujos cabelos prateados se derramavam de sua cabeça e se espalhavam pelo chão, e ao chegarem no chão, os fios de cabelo se transformavam em raízes que entravam pelas frestas do assoalho de madeira. Sentada numa cadeira-de-balanço, ela balançava para aqui e paraculá, e a cadeira cantava, nhã iá-nhã iá sem parar, sustentando o peso dessa senhora que era do tamanho do mundo. Vestida num belo tecido cor de rosa brilhante, ela tinha nos cabelos, uma tiara de diamantes, mas seus pés estavam descalços e sujos de lama; e em suas mãos, ela tecia uma malha com duas agulhas de tricô, enquanto seus óculos caiam eternamente pelo seu nariz, porém, acima deles, havia um par de olhos brancos, cegos como um caminho coberto de névoa e neve.
- Olá! - ela disse, daí, senti vegonha de lhe estar olhando, mas ainda deu tempo de observar no seu rosto as rugas do tempo que pareciam contar a origem das estrelas e as experiências das Terras todas em uma só face.
- Oi! - respondi, sem saber o que dizer, nem como reagir, daí, notei que os seus olhos brancos tomaram cor, e em cada um deles, havia uma banda de uma lua que ficava cheia quanda ela sorria, e ela sorria muito. E cada vez que ela piscava, um pássaro lá fora, gritava: Salubá! Salubà!
Eu quis logo me ajoelhar; ela acenou que não; ela disse que existe uma diferença entre respeito e submissão; que um viajante deve aprender a se ajoelhar com o coração, não com os joelhos, para poder pisar em todo lugar; daí, em algum ponto aonde corre a nascente da minha intuição e quem eu sou, eu ouvi ela me contando a história do mundo em que vivemos; e vi uma fila de espíritos esperando ela tecer a malha da matéria que eles usariam na Terra.
Ela me contou outras tantas coisas, mas disse que tudo aquilo só faria sentido lá naquela cabana, pois tão logo, eu saísse dalí, toda aquela conversa viraria pó de lembrança como o corpo que se desfaz ao fim da nossa existência no mundo da matéria.
Perguntei se poderia guardar, pelo menos, a recordação de tê-la visitado; ela riu e sua gargalhada tinha o som de uma queda d'água batendo nas pedras do rio, e disse:
- Você não veio me visitar, eu é que estou te visitando! Você vai esquecer boa parte daquilo que estamos conversando, mas a medida que você for trilhando o seu caminho, o que eu te disse, vai intuir em você, como chuva caindo...
Daí, caí ou levantei do meu sono, lembrando que eu jamais poderia esquecer aquele encontro, afinal, eu trouxe comigo algo desse sonho: a malha da "Mãe Velha" nesse corpo que estou usando.