Rituais humanos
De repente a entrega do primeiro buquê de rosas. Um anel, a deixada da boneca, a entrada, o início da valsa e o princípio de uma mescla de sonhos - de idealizações, sucessos e significados do dia a dia de ser adolescente. Uma música muito bonita e um jeito de dizer cheio de emoções rondaram o sublime e significativo momento daquela moça e da poética noite. Na dança, o embalo de centenas de pensamentos e, ao mesmo tempo, uma grande certeza de triunfo – o de ser capaz de amar e de ser amada. A certeza, também, de que nesse mundo de eventos funestos existem momentos eternizados pelo primor do que é humano. O despertar da esperança na compilação de abraços; muitos, de beijos; milhares, de apego, apego e mais apegos. Afetos, saudades, revivência de passado e toda delícia de energia para futuro. Isso tudo é parte de uma festa de 15 anos que fui ontem, à noite.
Neste caso, o que veio em meu pensamento, foi o significado em termos da importância abstrata e farta lógica da historicidade da vida para aquela garota. É que imagino como é ser adolescente numa sociedade de privações em que o mundo não cede ao intenso clamor pela re-procura da magia de se viver. Uso magia com intuito de falar do encanto que exercem nos sentidos os rituais humanos: as festas de 15 anos, as formaturas, as celebrações de todos os tipos de casamento, bodas, nascimento, noivado, aniversários e despedidas. Os rituais humanos são mesmo o autêntico bem imaterial que possuímos por sermos frutos de uma historicidade. Gosto de dizer que a vida tem seu sentido pelo conjunto de fatos, de momentos e da intensidade que vivemos o presente desses momentos. Considero essenciais os rituais humanos da vida cotidiana.
Não farei aqui uma explanação crítica dos inúmeros fatores sócio-históricos que embasam alguns desses rituais. Muitos surgiram na cultura ocidental como influência de domínio ou alguma forma de repercutir na vida humana as repetições de um grau de controle. Mas hoje, no século XXI, têm seus valores realçados pela beleza da diversidade de ser e da própria crítica que remodelou seus significados. Na verdade, quero defender mesmo o uso, o planejamento, a repetição desses rituais, como forma de dar significados simbólicos para vida. Eles engrandecem nosso amor próprio, transformando-se em elos que medeiam nossos dias a nossa história. Eles dão aportes para que alcancemos mais fácil nossos sonhos, para que possamos vivenciá-los com sabor, com merecimento, com emoção. Os momentos vividos com fortes emoções ficam na nossa vida como os acabamentos; o aperfeiçoamento, o remate da nossa trajetória individual e coletiva no mundo. O constructo que enche de sentido nossa imagem, nossa experiência na terra – um sentido que nos embasa de uma compreensão que tenta conceder valor à vida.
Os rituais humanos estão fora de moda. Coisas mais importantes e desejos um pouco mais capitalistas tomam seu lugar. Acontece também que pelas suas gratificantes significações muitos se utilizam deles como forma de exploração e de lucro. Não volto ao passado nem condeno a usura, mas refuto a idéia de que devam ser sempre muito caros porque são únicos na vida, uma pena. Uma pena alguém achar preferível um presente caro a sua chance de “ritualizar” sua história. Lamentável alguém trocar o senso criativo, emocionante e marcante de um ritual, pela palidez dos sonhos encaixotados.
A sobrevivência dos rituais está ameaçada. As pessoas querem coisas diferentes. Uma mudança normal, desde que não atualizem comumente nossa crise de existência, através dos inúmeros meios que oferecem felicidade enganosa. Felicidade não existe se não for associada aos grandes momentos da nossa vida. Os momentos são sempre curtíssimos espaços de tempo de uma determinada circunstância que tem para nossa vivência um valor. Nessas ocasiões a expectativa se faz verdade, o sonho se torna realidade, a vida é lembrada e celebrada com exatidão, o que a emoção não deixa a gente esquecer. O projeto de vida é resignificado, a delícia de existir ressaltada, o manejo dos sentidos é uma busca do som que marca, das vozes dos amores que dizem palavras afetuosas nesses rituais e do incrível encontro com o sentido – o sentido de existir.
Depois da festa conversamos sobre a vida, mas porque sobre a vida? Porque o ritual é uma forma de viver tão próxima do que sempre sonhamos que nos demos conta de que estávamos ali a refletir nossos outros rituais, os rituais da nossa família, dos filhos, dos amigos. Dessa forma, vivemos e revivemos nossa história, choramos nossas perdas – os rituais do fim da vida – e comemoramos nossas vitórias, assim num perfeito estado de felicidade absoluta.
É importante ressaltar que o valor do ritual não está na qualidade de recursos materiais em primeiro plano, mas sim na autenticidade de sua forma global. Isso revela que em uma festa de formatura, que poderá ser simples ou complexa, o realce estético não será, exclusivamente, o valor representativo do tamanho da emoção e do significado para qualquer pessoa. O dinheiro compra e auxilia com certeza todos os rituais. Porém, a sua essência pode ser sempre replicada de forma singela, sem enfeites, sem ornatos, sem ser caro ou luxuoso, com ênfase na modesta e significativa espontaneidade humana. Nela estão contidas as emoções. E o calor humano jamais se fará distante se o sentido for vivido com realidade.
Vivam os rituais que puderem. Façam deles os momentos intensos de sublime busca e encontro consigo mesmo. Realizem neles o singular, que é a vida. E realizem com quaisquer trejeitos, com qualquer roupa, qualquer bebida ou comida. O sentido não se vende, a criatividade não se compra. E a emoção, essa fartura preciosa, poderá preencher a vida para oferecer completude pouco a pouco. Faça alegria e festa com qualquer conquista, com o nascimento, com as vitórias, com a saúde, com o crescimento, com a saudade e com a dor. Os rituais comuns não podem se exaurir no tempo. Serem engolidos pelo individualismo ou pela busca desenfreada por aceitação através dos bens materiais e do status social. Os rituais não existem para por parênteses na vida e sim para mediarem nossa existência física, mental, social e espiritual tornando-as unidas para que minimizem nossa imperfeição.