E O GALO CANTOU...
“...e nesse momento cantou o galo. Pedro recordou-se do que Jesus lhe dissera: antes que o galo cante, negar-me-ás três vezes e saindo chorou amargamente.”
São Mateus
Os mitos se sucedem no curso da história. Poderia ser o final de um conto infantil no amanhecer feliz de uma aventura ou a triste natureza humana retratada em uma passagem bíblica, mas foi num entardecer, na zona oeste do Rio de Janeiro, que um pio denunciou o movimento ilícito. Galos estropiados e outros tipos mais elegantes foram surpreendidos com o rigor da lei.
As instalações luxuosas e as vultosas apostas ganharam os noticiários com os perfis das personalidades detidas para averiguações. Criou-se o fato. Inserções de notícias ganharam as programações televisivas com os depoimentos dos presentes e um flash do pobre animal mutilado concluiu a mensagem. A opinião pública logo proferiu o julgamento e o fato enriqueceu o anedotário do final de semana com as rinhas de galos e outros bichos. Afinal não interessa como a notícia é escrita, o que verdadeiramente importa é como é lida...
As vítimas não irão para panela, apesar de permanecerem no calor dos holofotes. Mas o futuro é certo e independe da natureza dos atos: quem tem pena morre depenado.
Todos sabem que existe, o Brasil inteiro conhece o hobby das personalidades, contudo a publicidade não torna insubsistente a lei. Rinha de galos é um crime ecológico e as penas para as diversas modalidades estão previstas e ganham novas proporções nos novos cantos.
E o galo cantou... Uma leitura superficial nos periódicos mostra que o fato se estende além do galinheiro. Nas entrelinhas, observamos as rinhas de homens na rua, esfomeados e raivosos, dispostos a lutar até a morte pela sobrevivência, enquanto espectadores permanecem distantes. Observamos as brigas políticas, as enxurradas de denúncias e acusações, estimuladas pelos jogos do poder e bastidores ocultos. A realização do próprio prazer se sobrepõe a dor alheia, acostumamos o olhar e não sentimos o sangrar do outro... Façam suas apostas!
A percepção do homem distante da natureza possibilita a criação de perfis absurdos, a compaixão do ser que chora com o padecimento de uma baleia encalhada na praia e se diverte com a violência de uma briga de galos ou com as tantas farras que existem com bichos e pessoas.
Ouvem o galo cantar e não sabem onde... Será que os direitos humanos também são tão ambíguos? Será que o homem ainda consegue falar uma verdade se não for a propagada? Ou será que estamos fadados a despertar com o canto dos galos?
O fato se dissipa na sociedade do espetáculo. O crime ecológico se perpetua em novas operações e a verdade sobre a notícia será arquivada definitivamente nos argumentos de acusação e defesa. Afinal, com bem definiu Honoré de Balzac em Um Caso Tenebroso:“A sociedade é como o oceano, após um desastre retorna o seu nível e seu ritmo e apaga os vestígios pelo movimento de seus devoradores interesses.”