COMO NASCEM AS ÁRVORES?
Um programa de televisão ensinava a importância dos pássaros: são os responsáveis pelo transporte das sementes formando, centenas de quilômetros alhures, florestas densas. Caídas ao solo fértil, as sementes moldam uma rica flora. Lançadas em terras estéreis, esperneiam, suspiram, expiram.
O nascimento das árvores independe da ação humana. Cabe aos pássaros a tarefa de salvar o mundo pelo trabalho delicado. Se as sementes transportadas não frutificam, valeu a tentativa. Se são vitoriosas, os resultados florescem lenta, gradual e naturalmente.
Nelson e Goreti – meus primos da capital paulista – vieram ao interior no feriado de Corpus Christi de 2001. Ainda desconhecia as peculiaridades entre religião e religiosidade. Sempre que tinha oportunidade, Goreti atacava meu ateísmo: repetia que Santa Mônica orara quarenta anos em prol da conversão do filho.
Os quarenta anos de oração de Santa Mônica deveriam ter sido omitidos das recordações se, numa das limpezas de minha biblioteca em 2003, as “Confissões”, de Santo Agostinho, não tivessem me hipnotizado. O prefaciador referia-se ao desespero e à angústia do homem que chorava no jardim quando, ouvindo a voz de uma criança, olhou para o lado e encontrou uma mensagem de transformação. Linhas abaixo, no mesmo prefácio, o detalhe: Santa Mônica, mencionada inúmeras vezes por Goreti, tratava-se da mãe de Santo Agostinho cujo livro, numa perspectiva menos teológica do que filosófica, reforçou minhas dúvidas de fidelidade espiritual.
Numa das primeiras aulas da graduação em pedagogia em agosto de 2010, uma aluna encetou diálogo, compartilhando comigo dos sacrifícios para minimizar os efeitos do câncer manifestado no filho. Lembrei-me da história de Santo Agostinho e a repeti à aluna, numa tentativa de confortá-la e incentivá-la nos desafios familiares cotidianos.
Pensei sinceramente que a repetição do enredo não tivesse servido de nada. Meu ensaio de solidariedade descera aceleradamente as correntezas das grandes cachoeiras? Numa avaliação em dezembro, distribuí folhas aos alunos solicitando-lhes que, sem a necessidade de se identificar e protegidos pela segurança do anonimato, apontassem críticas à minha metodologia de ensino. Saí da sala por vinte minutos. Ao voltar, encontrei os comentários sobre minha mesa e embaixo de minha bolsa.
Em casa, li crítica por crítica, folha por folha. Uma das folhas, dobrada em quatro partes iguais, trazia escrito em letras grandes: “Leia, por favor”. Abri o papel. A aluna lembrava do episódio de agosto. Ao chegar em casa, pesquisara sobre Santo Agostinho e sua mãe. Concluíra que ainda não tinha orado nada e redobrou seus esforços nos pedidos divinos. A história de Santo Agostinho multiplicou sua fé, impulsionara sua esperança e consolidara sua determinação nos rogos ao poder supremo.
A semente jogada reiteradamente por Goreti em meus ouvidos estéreis às incursões da religião – mas não da religiosidade – em junho de 2001 foi reavivada em 2003 para alcançar seu primeiro fruto em dezembro de 2010.
Lembrei-me dessa história no primeiro domingo de 2011. Minha mãe, que é pediatra, emocionou-se ao saber que uma de suas ex-pacientes entrara no curso de medicina da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) por um motivo: queria ser médica como sua antiga pediatra.
Algumas pessoas são como pássaros: jogam naturalmente sementes por onde passam. Se a semente cairá sobre a terra ou se morrerá sobre rocha? Uma questão de sorte. Se a árvore crescerá e oferecerá bons frutos? Depende da fome do observador. Se os frutos fornecerão novas sementes para propagação de sua força? Mistério da vida. Porque a vida desenrola-se sem grandes explicações, contrariando muitas convicções científicas, surpreendendo os resultados óbvios e reconstruindo os caminhos do espanto. Uma semente jogada anos ou décadas atrás eventualmente pode construir uma floresta cheia de alegrias.
Como nascem as árvores? Talvez Goreti, a minha aluna de pedagogia, minha mãe e a nova acadêmica da UFPB possam explicar.
*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 7 de janeiro de 2011.