BANHEIRO DOS HOMENS
Em pesquisa de opinião realizada junto aos empregados de um setor de uma grande empresa acerca do maior problema enfrentado pelo grupo, uma colocação pareceu a princípio muito ingênua: na opinião do pesquisado, o problema mais preocupante era a falta de uma tampa na bacia sanitária do banheiro dos homens. “Com efeito – explicava ele – o assunto é tão banal e de tão fácil solução que todos o encaram como praticamente resolvido, e aí é que está o problema, pois a solução já se arrasta por vários meses, por pecar pela simplicidade".
Consequentemente, quais brasileiros na Índia desconcertados com a ausência ordinária de vaso nas toilettes, os usuários daquele recinto são forçados a se transformar em verdadeiros malabaristas para evitar o contato direto com as bordas do vaso, frequentemente com respingos suspeitos. Quando enxutas, não se pode garantir não ter sido o vento ou o tempo o responsável pela evaporação do H2O da substância suspeita, deixando jazer, invisíveis, escondidas na sua pequenez, eventuais micróbios. A possível preocupação do usuário anterior em fazer uma higiene simplificada à base de papel absorvente não garante também uma perfeita desinfecção preventiva ou corretiva de modo que se possa sentar despreocupadamente. Há que se considerar também o caráter anônimo do(s) responsável(eis), favorecendo a propagação de patologias várias sem que se possa acarear depois as responsabilidades envolvidas.
Há quem opinou não serem as crianças, mas os empregados mais altos os mais suspeitos pelos respingos e outras eventuais contravenções higiênicas. Em minha opinião, essa ótica baseada em indícios isolados é adivinhatória e não tem qualquer fundamento: utilizando a mesma linha de raciocínio, poder-se-ia suspeitar igualmente dos empregados japoneses ou dos mais complexados, e se descartar os praticantes de esportes que envolvam pontaria, tais como bola de gude, botão, basquete, bilhar, sinuca ou tiro ao alvo, só para citar alguns exemplos. Embora persuasivos, esses indícios estão longe de serem conclusivos, pois como se poderia atribuir pesos a cada um deles e se chegar de modo ponderado ao mais suspeito? E mesmo se se pudesse, que base há para se descartar a inquestionável possibilidade de uma boa educação sanitária vir a contrabalançar o peso das evidências que recaem sobre algum indivíduo com base nesses elementos tão voláteis? E mesmo se um Sherlock Holmes, em sua infinita perspicácia, lograsse descobrir o(s) responsável(eis), não seria muito mais simples a compra imediata da tampa do aparelho sanitário ali na esquina por alguns trocados?
Enquanto essa providência não é tomada, usuários mais criativos talvez vão contornando esses problemas higiênicos utilizando artifícios perfeitamente justificáveis, mas nada econômicos para a empresa, tais como revestir as bordas da bacia sanitária com papel higiênico. Se estimarmos em um metro de papel extra por cada utilização e presumindo-se que cada um dos 50 empregados contribuem com sua parcela diária, há a grosso modo um consumo extra de 50 metros de papel por dia, ou mais de um km por mês, 12 km por ano, o que equivale a cerca de 25 rolos. Somando-se isso ao tempo despendido para o consumo da operação, isto representa um gasto exorbitante se comparado com o valor irrisório de uma tampa de plástico, que dura muitos anos, enquanto não se compra uma definitiva, de acrílico branco.
Artifícios desse tipo não garantiriam a impermeabilidade da solução, mas só e unicamente a imediata multiplicação do prejuízo, o qual definitivamente dobraria se a natureza houvesse obrigado nossos homens a repetir o mesmo ritual do revestimento das bordas quaisquer que fossem as utilizações sanitárias, como é o caso das mulheres. Por esta razão, alguns afirmaram que paliativos desse tipo, ainda que úteis em situações emergenciais, não se comparam em termos econômicos com a simples instalação no banheiro dos homens da tampa já existente no das mulheres. “Ademais – acrescentou – uma tampa em banheiro de mulher está mais ligada a uma questão de conforto, evitando que a carne quente de sua ... região glútea entre em contato direto com a porcelana fria”. “É bem verdade que as mulheres precisam menos da tampa que os homens, pois não costumam sujar as bordas, "mais por razões ligadas à natureza do que a sua maior educação sanitária” – arrematou um outro, acusado depois de não tê-la.
Uma funcionária me sugeriu depois discretamente que fossem os homens aconselhados pela gerência a imitarem o infalível estilo feminino de manter o higiene: “sentarem-se, não importando para que. A solução pecou dessa vez pela complexidade – alegaram os homens – “pois há que se desvencilhar de no mínimo três peças do vestuário, enquanto é bem mais simples desatacar um ou dois botões, no máximo três, quatro somente em casos extraordinários”. Em vista dos homens da Unidade refletirem a índole machista do povo nordestino, esse estilo não pegou. Enquanto isso, uns acusam outros de falta de educação sanitária, os chefes alegam que os subordinados são os responsáveis, estes serem os estagiários, que acusam o pessoal das firmas prestadoras de serviço, que acusa os meninos da Febem, que acusam os vigilantes, que acusam os clientes, que não podem se defender por não saberem das acusações que pesam contra eles.
É preciso ponderar que a omissão da direção da empresa em resolver tais problemas possibilita reivindicações de ordem trabalhista, tais como o recebimento de 30 por cento de insalubridade e mais 20 por cento de periculosidade, em troca da total assunção dos danos pelo empregado.
A situação ambiental é ainda mais preocupante quando se trata de novos usuários que só chegam a perceber a falta da tampa em circunstâncias especialmente inadiáveis: além dos transtornos de ordem emocional oriundos dessas circunstâncias vexatórias, há repercussões fisiológicas imprevisíveis para a atmosfera do ambiente, extensivas às demais dependências, por não haver teto no gabinete. Uma das menos graves é a elevação do número de decibéis na já barulhenta Unidade, decorrente da saraivada de ... protestos dos utilizadores do recinto naquelas condições, irritados pelo retardo crônico das providências.
A falta de dotação orçamentária previamente autorizada para essa pequena despesa é apontada como fator dificultador da solução: há toda uma burocracia envolvida em conseguir o “autorizo” da unidade financeira: fazer o empenho prévio, justificar a despesa, enviar o formulário pelo malote, esperar suas chegada e o tempo necessário para análise, aprovação, devolução etc. A expectativa de que a qualquer momento alguém terminará se impacientando e comprando a tampa do próprio bolso vai se encarregando de adiar o início daquele processo. Artifícios desburocratizantes foram também imaginados, tais como converter a verba necessária em condução urbana, traduzi-la em hora extra no cartão de ponto do empregado que adiantar o dinheiro, pedir nota de açúcar e café compráveis sem empenho, e trazer do mercado uma tampa, em lugar daqueles ítens. Ainda que honestas no seu espírito e com intenção apenas agilizadora, não se cedeu à tentação a fim de que inspetor algum pudesse jamais questionar a lisura da operação e fosse preservado o equilíbrio psicológico da Unidade.
Apontar a falta de uma tampa numa bacia sanitária como o maior problema em uma unidade de uma grande empresa pode parecer a princípio uma colocação ingênua de um empregado. Mas, se se gasta tanto tempo e esforço para se resolver problemas tão simples, para quando poderemos aguardar a solução dos problemas mais complexos da Unidade?