Crônica de um caipira urbano.
Quando uma viola toca, o meu olhar se perde ao longe e viajo pelas lembranças, movido pela saudade.
Como uma canoa invisível que desce rio abaixo nas minhas veias, virando um turburinho quando meu coração, aperreado pelo acúmulo de tantas coisas até então esquecidas, explode qual cachoeira, pois minha memória parece querer reviver tudo de uma vez só, expelindo as lembranças pelos meus poros, como gotas de suor saídas da alma.
Ah, que dom tem a viola de mexer tanto com a gente.
Quem foi da roça, então, quanta emoção, quanto sentimento, que me faz vislumbrar na retina coisas da minha infância.
Aquele nó na garganta, que nem sobe nem desce, numa mistura de tristeza e alegria que só a saudade sabe criar.
Dá até para sentir o cheiro da terra, o toque da textura do chão molhado sob meus pés descalços de criança caipira.
Fecho os olhos e mergulho de vez neste mundo, agora ouvindo até aquela algazarra típica da roça: os grilos, os sapos, as galinhas, as vacas mugindo e até, juro, o gemido de um carro de boi que parece prantear minha ausência.
Na estradinha que vai pra lagoa, a poeira levanta um redemoinho, e eu, sem peneira! Podia ser um saci.
O barulho de um machado cortando lenha. É São João e vai ter fogueira, com milho e batata assada na brasa.
O cheiro forte de café novo coado, que vem do fogão de lenha, me cutuca a consciência para lembrar as minhas mãos furtivas á cata de um pão de queijo, de um biscoito ou de uma broa de milho.
Na roça, a gente não tinha riqueza mas tinha fartura.
Ah, viola, como mexe com a gente, como me faz bem ouvir seus acordes.
Mesmo hoje, com as garças perdendo lugar para os quero-queros e os pés de mixirica sendo trocados pelas gôndolas do mercado, eu ainda sei viajar nos ponteios das cordas duplas, o último baluarte de quem tem mistura de terra no sangue, de quem, feito estranho em mundo novo, ainda teima em dar bom dia ou boa tarde mesmo para os desconhecidos.
Ainda paro para ver um bem-te-vi solitário numa arvore perdida nos concretos; ainda sei curtir as floradas dos ipês roxos e amarelos que acompanham meu caminho, feito bandeiras desfraldadas que resistem ao tempo e ao homem.
Até encontrei um joão-de-barro com sua casa nova numa sibipiruna comida pelos cupins. Passei então a torcer pra sua ninhada crescer antes da árvore cair.
Enfim, nessa cidade grande onde a rotina pela sobrevivência nos obriga a viver a vida dos outros, o som de uma viola soa mágico, me libertando por algum momento dos grilhões do lugar comum, fazendo com que meu olhar pareça perdido no nada, mas com minha mente recarregando minha alma na energia das lembranças dos bons tempos que deixei para trás.
À noite, já em casa, meus pés descalços no assoalho frio não me dão sensação nada parecida com o que eu sentia, ao contrário, um súbito arrepio prenuncia um início de resfriado ou alergia, que logo espanto com uma cachaça mineira que sempre costumo ter.
Ponho então um disco de viola e viajo novamente, meu coração guiando.
Ah, viola, que dom você tem de mexer tanto com a gente; de nos fazer sentir novamente pessoas; de nos fazer pequenos frente ao destino, mas grandes quanto ao futuro.
Ou isso só funciona com caipira?