Desmandos de verão
Desmandos de verão
Da minha janela comando quase tudo o que acontece, de leste a oeste. Neste 7 de janeiro ordeno poucos carros e motocicletas nas duas pistas da avenida. Se querem mais que se ardam, serão poucos pois assim designei. Se choveu barbaridade nalguns municípios não posso impedir. Tal diretriz é configurada na primavera e uma vez dada a ordem, nada pode detê-la. Se ontem caíram uns pinguinhos seguidos de um trovão, um só trovão, quem mandou fui eu. Ai de quem se atrever a espiar o que não deve e a esperar o que não merece. Terá contas a prestar comigo por mais tempo do que possa sonhar vossa vã caligrafia.
O fruteiro está a vender rodelas geladas de abacaxi a um real. Comenta-se que desde maio de 2010 venho planejando essa ação.
Todas as blusas listradas e as cabeças raspadas estão proibidas e as que ainda se atrevem a circular, circulam sob meu indulto. Os passarinhos que se alinhem, de preferência na sombra e que cantem em coro, senão irei varrê-los todos com meu sopro devastador e restarão somente aves quietas e temerárias. Nem mesmo as que arrulham serão poupadas.
As moças nuas das capas de revista estão completamente proibidas de posarem nuas a menos que estejam completamente nuas e dispostas a saltarem de dentro das revistas.
A palavra panacéia surgirá com acento toda vez que for preciso, em sinal de protesto contra a retirada oficial do acento e sua hedionda justificativa.
Não me gabo, até muito pelo contrário, lamento o fechamento do cine Belas Artes. Entretanto, observe, se essa mácula tivesse ocorrido sob orientação minha, minha dor seria menor. Um pranto seco, confesso, mas cada vez que fecham uma sala de projeção uma única lágrima seca me escorre pela face. Há mais tempo ainda decretei a inutilidade das lágrimas e a remoção do nó na garganta. Valem menos do que um arrulho e atrapalham sobremaneira na orquestração dos desmandos.
Da minha janela, reitero, comando quase todos os acontecimentos. Todos, convenhamos, seria demais para mim. Já tenho idade. Embora às vezes pense em me esquivar das responsabilidades, e não mais dirigir o ruído das esquadrias de aço se dilatando sob o sol inclemente noutras janelas, nas minhas não, mais o som frenético das asas das moscas e das mariposas, tudo isso somado ao barulho de uma colher de pau dormindo numa pia de fórmica, sim, eu comando, bem como o desfile de guarda-chuvas nas intempéries. Ordens minhas, desfilem, digo, tão logo a intempérie tenha início.
Outro dado importante a destacar – jamais incentivei que os homens fossem covardes no macio da madrugada tornando-a sanguinária, porque, saiba, necessito de repouso nas horas vagas e aprendi desde cedo que a covardia dispensa horários.
E houve dias em que falei para as mulheres se calarem, do contrário ver-se-iam impedidas de ouvir o que vinha de seu próprio interior, e isso teria surtido efeito não fosse meu profundo cansaço e a vontade imperativa de me refugiar noutros mundos, onde as vozes são suaves e fazem uso de longas pausas.
Porém não se iluda, no verão mando eu e até a estrela longínqua de brilho quase irrefletido acata meu mais tênue desejo e desliza ligeira para a linha do firmamento, feito um aceno recatado de uma luz menor e não menos orgulhosa de si mesma.
Nessa estação, todos os brilhos tem sua importância e eu digo que assim seja e assim será.
Na noite passada, mandei que escurecesse. Ao raiar do dia, impus que clareasse, pouco importando a presença das nuvens. Dia primeiro, bradei: faça-se a posse. Dia 2 será um domingo, anunciei, e daí por diante todo o calendário se organizou, com o dia 3 caindo na segunda e dia 4 na terça, e assim sucessivamente até o dia de hoje, 7 de janeiro. Não foi uma ordem muito difícil de cumprir.
Na maior parte das vezes eles obedecem por temor. Temem que eu me zangue e me torne mais alto que o Everest e mais forte que o oceano Atlântico. Eles só entendem essa linguagem.
Por isso os carros buzinam, porque eu mando. Por isso os faróis piscam, os fios vão de um poste a outro e existem lentes nos aros dos óculos. Noutros tempos os rádios tiveram antenas cumpridas e eles trabalharam bastante para que fosse desse modo.
Temem tanto que obedecem. Entram em pânico só de pensar que ao término de um dia azul de verão eu possa simplesmente aparecer e dizer-lhes: doravante, tudo fará sentido.