Há de ser

Adelia diz que certos escritos seus não são literatura, são coisas que têm importância para ela, afetiva, de um bom tempo da sua vida. Comparando aos meus escritos, este pensamento quase se aplica por inteiro. O que escrevo, leio e releio, são palavras ditas a mim, por vezes tão necessárias quanto o mirar-se ao espelho. Tenho que ver-me, lamber-me, sentir-me. De bons tempos? Haverá tempos ruins? Nas noites escuras se descobrem estrelas, o sol escaldante faz brotar sementes, na dor do parto dá-se à luz. “O que não parece vivo, aduba. O que parece estático, espera”.

Numa noite qualquer, uma frase quase me quebrou os ossos. A pergunta foi: então você gosta de sentir intensamente, por isso se casou duas vezes? As palavras ficaram guardadas – machucando, pois usei-as contra mim mesma: pra que sentir tanto, pra que querer tanto? O que consegui com isso? Dois fracassos?

Arnaldo Jabor cita que não se deve dizer ou pensar que um relacionamento não deu certo. Deu. Na maior parte do tempo, com certeza deu certo, contudo houve um raro momento em que a coisa desandou e o “pau caiu a folha”.

Hoje pela manhã, sem mais nem menos, veio a resposta que evitaria a quebra de ossos daquela noite qualquer...

Não, eu não me casei por sentir intensamente. Aliás, eu nunca me casei de fato. Vivi relacionamentos, desfrutei de afinidades, descobri prazeres e desprazeres, convivi. E na dita intimidade com outro ser, fui pouco a pouco me desvelando, conhecendo meus demônios, acariciando-lhes os chifres. Talvez a resposta seja ao revés: é por sentir intensamente que saio em busca de mim. Na primeira separação, eu não sabia o que queria, mas tinha certeza do que não queria, daí o itinerário começou a aparecer. Acho que foi o meu primeiro grande encontro: as vozes interiores começaram a sussurrar e eu enfrentei o medo de ter medo. Não ultrapassamos nossos limites, retrocedemos nos entraves. Isto me faz crer que não houve amor, e portanto, nada de casamento.

Vivendo uma paixão não correspondida, disse a um amigo: que bom que isso aconteceu. E ele completou: por que? Agora você se envolverá menos, colocará mais o pé no chão?

- Não, meu caro. Este evento só aumenta a minha predisposição às paixões e quiçá um dia, ao amor. Porque sentir intensamente sou eu e não quero ter que me afastar de mim!

“Há de ser impune

Há de ser

Há de ser insone

Há de ser

Há de ser escândalo

Há de ser relâmpago, ciclone...”

Lígia Martins
Enviado por Lígia Martins em 06/01/2011
Código do texto: T2713192
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