AS CEREJAS

Estou bem no meio de um capítulo do meu tão protelado romance, (que agora resolvi que vai), e de repente me bate um desejo incontrolável de comer cerejas. Acontece que são onze horas da noite e não fui ao supermercado hoje. - Não tem cerejas em casa! – repito-me, com aquele tom de para-de-me-lembrar-disso e ao mesmo tempo de porque-você-deixou-acabar-as-cerejas? Só que já é a terceira vez que as benditas cerejas atrapalham o meu texto, que agora resolvi falar delas.

Eu como cerejas, compulsivamente, há pouco mais de um mês. Antes disso, durante toda a minha vida, nunca tive a curiosidade de sequer saber o gosto que tinha uma. Curiosidade tinha, a bem da verdade, porque há uma promessa de três cerejas ainda não cumprida e que vou cobrar, qualquer dia desses. Mas comer, no sentido gustativo da palavra, nunca tive. Aí, de repente, um dia resolvi comprar um vidrinho delas, em conserva. Comprei mais pelo vidrinho, que achei lindinho. Comi uma e tinha gosto de xarope infantil. Me lembrou qualquer coisa prazerosa de infância e gostei. Pela lembrança prazerosa de infância. Comi outra, e outra, e outra. Comi o conteúdo do vidro, pronto. Na ida seguinte ao supermercado e em todas as outras, o vidro de cerejas passou a fazer parte do pacote básico essencial, juntamente com o pão, leite, sabão, e outras poucas coisas.

É impressionante como certas coisas, assim como certas pessoas, passam a fazer parte dos nossos desejos incontroláveis, assim, de uma hora pra outra, e com tanta força que chega a doer na boca do estômago mental.

Pode, alguém morrendo de paixão e desejo por uma cereja?

Ai, que saudade de ontem, quando comi as últimas, sem saber que hoje não mais as teria!