O Sábio na Torre

Ele se isolou em uma torre, no auge de seus 37 anos, vendeu seu cargo de magistrado, sem olhar para trás, sem pensar duas vezes e refugiou-se em seu próprio Universo. No caso, uma torre circular, no terceiro andar do castelo de sua família, interior da França. No século XVI, a morte batia cedo à porta dos frágeis corpos de carne. Viver muito era alcançar os 40 anos. Tempos difíceis eram aqueles como todos os outros.

Dizem que os dias atuais são os piores para se viver: perdido de quem tem filho atualmente, que mundo cruel. Pergunto-vos: por acaso já houve época fácil de se viver? Não foi ontem, não o é hoje. Nada direi do amanhã, pois o futuro tem o mau hábito de nos surpreender e de desmascarar os videntes. Assim sendo, visando a imortalidade do que escrevo, nego-me a predizer o futuro: limitarei a falar do passado e do presente, palpáveis e teoricamente mais fáceis de dominar.

Nosso personagem vivia em tempos de guerra, tão terríveis como qualquer outra. Cruéis, mas sempre justificáveis pelos defensores das armas. Não há guerra injusta, dirão os senhores das armas, há apenas propagandas mal feitas sobre elas. Naquela França em que os católicos e huguenotes matavam-se, o humanista Montaigne decidiu que era hora de entrar para a história: deu as costas ao mundo e abriu as do conhecimento.

Em seu isolamento, afixou na porta de entrada da sua biblioteca uma tábua com os dizeres: “liberdade, tranqüilidade, ócio”. Viveu fiel àquilo no qual acreditava:

- “A glória a que aspiro é a de ter vivido tranqüilo...”

Sem ambições além das que o autoconhecimento determinava, dedicou-se a ser um devorador voraz de livros, criando um gênero que permanece atual até os dias de hoje: o ensaio. Neste o escritor pode escrever à vontade, sem limites, além dos impostos pela sua própria imaginação. Montaigne era um prosador nato.

Se vivesse hoje, provavelmente seria encontrado sentado na praia de Copacabana, com um livro em mãos, sentindo a brisa fresca em seu rosto, imerso em pensamentos. Retiraria o “notebook” de sua pasta e atenderia aos anseios de sua intuição. Ignoraria as mentiras da política, o caos do Iraque, as bravatas coreanas e, caso escrevesse sobre estes temas, os reduziria à sua real importância diante dos temas existenciais mais profundos, ao que realmente importa: “viver dignamente”. Publicaria seus textos em jornais nacionais, teria um “blog” na Internet e seria um crítico contumaz da nossa maneira desorientada de viver. Ele escrevia por instinto, deixando o pensamento divagar, com base na experiência, na vivência, no sentimento. Escrevia com gosto, com paixão sobre temas variados.

O ócio produtivo era valorizado pela sociedade intelectual da época. O filósofo isolou-se para pensar sobre si mesmo e para repensar o mundo, não é surpresa que seus textos são lidos e permanecem atuais ainda hoje. E por quê? Naquela época de trevas, em que o Novo Mundo fora recém descoberto, não havia o conceito de indivíduo. Pertencia-se a uma região, a uma família, a uma ordem, a um ofício. O João, o Antônio nada significavam. O que valia era o Pedro da Família Rosa, da região de Andaluzia. O destino era algo alheio ao homem, imposto por forças exteriores. Montaigne assumiu a responsabilidade e o prazer de construir o próprio destino: tomou para si as rédeas de honrar sua existência assumindo a responsabilidade pelo que lhe acontecesse. Rompeu com uma forma de pensar e lançou bases para o pensamento moderno ao afirmar: “eu sou a matéria do meu livro”. Ele pensava livremente, reconheceu e afirmou a complexidade do ser humano, de cada um, que mesmo pertencendo a um grupo, é diferente.

Não se tornou ateu, mas o seu ceticismo o distanciava dos rígidos dogmas católicos, empurrando-o de encontro a um pensamento que contrariava a cultura dominante, colocando-o em choque com as linhas doutrinárias convencionais. Graças ao seu isolamento, e à preocupação com ou huguenotes, conseguiu safar-se de perseguições mais diretas.

Quanto ao Brasil, apelou para que os seus contemporâneos europeus tentassem olhar os nativos de nossa terra sem preconceitos, falhou nessa tentativa, o que ocorreu depois testemunha isso. Como era hábito rotular como bárbaro qualquer modo de viver ou pensar que não fosse o europeu, foi a cultura indígena assim tratada. Mesmo que tenha afirmado que os índios eram seres de Deus, criados puros, o que era uma heresia aos da época, e que desconheciam a “avareza” e a “mentira”, não bastou para convencer os seus. Chegou ao extremo de afirmar que as guerras religiosas, que o homem que se dizia civilizado travava, eram mais cruéis que as dos indígenas, e até o canibalismo chegou a justificar: visto ser uma honra devorar um adversário e assim poder dele herdar as qualidades. Não era um canibalismo fútil, mas tratado com “respeito”, dentro do alcance de “suas crenças”.

Michel Eyquem, o Monsenhor de Montaigne, faleceu velho para a época, aos 62 anos partiu, tendo  deixado precioso legado à humanidade (Ensaios 1580-1588):

-“Eu sei bem do que eu estou fugindo, mas não o que eu estou buscando.
-...há uma peste no homem, é a pretensão de saber alguma coisa.
- ... há em nós mais vaidade do que infelicidade, mais tolice que malícia, mais vazio do que maldade, mais vileza do que miséria.
- A palavra é a metade de quem a pronuncia, metade de quem escuta.
- Existem derrotas mais triunfantes que as vitórias.
- Os homens tendem a acreditar, sobretudo, naquilo que menos compreendem.
- Apenas pelas palavras o ser humano alcança a compreensão mútua. Por isso, aquele que quebra a sua palavra atraiçoa toda a sociedade humana”.

Podemos deduzir que ele sabia com pensar e como viver!