Nada Vale o Esforço

O vento veio como uma amante fogosa me acariciar, querendo me animar pra ter mais, mais de mim, mais da minha vitalidade que fora recentemente abalada. Eu viro o rosto, incapaz de aceitar um afago que salienta a minha derrota. O vento insiste e vem do outro lado, amante compreensiva que é, "don't worry about that", ele sussurra nos meus ouvidos, sussurro que eriça os pêlos do meu corpo. "Preciso de um trago", eu digo. "Mas você não precisa disso agora", o vento diz. "Como não?", questiono. "É nessa hora que a gente mais precisa da amnésia e da euforia que a birita proporciona", respondo, demonstrando com um esgar a fusão entre um olhar triste e abatido com um meio sorriso de escárnio que sustenta o último vestígio de um orgulho abalado, orgulho de ser o que se é e misturado ao desespero de não conseguir exteriorizar a causa prima de tal orgulho, mesmo sabendo que ele poderia ser o divisor de águas da minha existência, o trampolim para uma nova era, para uma vida menos desgraçada e sem propósito onde se esbarra diariamente nas paredes da inutilidade de ser um alien em seu próprio planeta. "Não era pra ser", diz o vento, repentinamente mais frio. "Como 'não era pra ser'? Sabe, caralho, essa espera me deixa louco. Essa droga de espera me neutraliza, sabia?" Silêncio. Fico a observar uma folha morta no chão. É Verão. Ela não precisou do Outono pra poder morrer. Ela não se move. O vento cessou, me deixando na vacuidade dos meus pensamentos capciosos. Um caleidoscópio misto de palavras e rostos flutuantes pairam na minha retina. Som de vozes. Dezenas de tartamudos falando ao mesmo tempo, cada qual com seu egoísmo e pretensões, querendo seu quinhão de conforto dentro da minha cabeça confusa e nauseabunda, anestesiada pela mesma novidade de sempre. "Reconheço a minha inaptidão", choraminguei pra folha morta. Ela não se moveu. "Fui um imbecil antecipando as más notícias". Assoei o nariz e continuei falando com a folha:-" Sabe, perdi a ambição necessária na hora. Não tive força no esfíncter na hora: não soube como apertar bem o olho do cu e caguei tudo, cara". A folha se arrasta uns poucos centímetros. "Ei, vento", bradei, "traga-me uma dose, sim?". "E os seus remédios?", inquiriu o vento, "você precisa ficar bom, cara!". "Bom pra quê? Essa doença não vai passar. Não preciso que ela passe. Preciso que ESSA TRISTEZA passe. Um homem doente dá extremo valor á vida, não percebe? O infeliz se aferra à vida com unhas e dentes. Chega até a clamar para um deus que nem acredita, pedindo misericórdia e sua vida poupada. O deus do homem triste tem inúmeras formas: a do meu é cilindrica com quatro dedos de uísque e uma pedra de gelo". "Complicado...". "É... Porra, preciso de algo que me salve dessa melancolia. Do jeito que ela anda vou acabar perdendo a vontade de viver e começar a tocar fogo em tudo que faça apologia a um tal deus que me abandonou. Já pensou a merda? Não quero parar num manicômio judiciário só por que uma dose me foi negada. C'mon, dude!". Silêncio. Um incrível silêncio sepulcral. Tudo me parece calmo demais. É assim, então, que ficamos quando mortos? Digo, envolvidos num manto silencioso de calmaria? Como que pra responder minhas indagações, uma nova lufada de vento. Desta vez o sentido requisitado foi o olfato: o vento reapareceu trazendo consigo um cheiro azedo de vômito fermentando com um algo a mais; um cheiro que me trouxe lembranças da minha infância, de quando perambulava por terrenos baldios em busca de brinquedos abandonados e me deparava com cadáveres de cães e gatos. Corpos inchados dando a impressão de uma iminente explosão de vísceras apodrecidas, carcomidas por cancros malignos e/ou pelo trabalho diabólico de venenos administrados por gente sem alma; sim, lembrei daqueles olhos esgazeados, gosmentos e esbranquiçados sendo rodeados e servindo de pista de pouso e de alimento para moscas famintas. Tive um acesso de tosse suscitado pelo nojo de tal lembrança. "Nem pense nisso", murmurou o vento. "'Nisso' o quê?", redargui. "Você sabe do que eu estou falando. A transição não é fácil e nem pacífica. Segure sua onda, velhinho", respondeu o vento, dando um tom de amizade em sua peremptória proclamação. E foi-se.

A folha desapareceu. Todos os cheiros desapareceram. Foi tudo como um sonho. Mas foi real. Estava sentado num pequeno saguão com mais quatro pessoas, quatro mulheres, com expressões mistas de contemplação, que delatavam introspecção, dúvida, frustração, confusão. Continuava ventando, um vento frio até demais para o mês de Janeiro. Esperávamos o ônibus fretado que nos levaria até a estação de metrô onde cada um de nós - que por algumas horas tivemos uma experiência única e infelizmente um pouco devastadora - seguiria seu próprio rumo já se esquecendo dos tensos momentos que vivemos juntos. Não tínhamos assunto. Tínhamos nervos em frangalhos, esperanças desmoronando dentro de nós, lágrimas querendo brotar e ganhar o mundo. Falhamos. Tínhamos falhado em alguma coisa, em algum momento. Os balões que carregavam nossas quimeras agora desciam sobre nossas cabeças: pesados, densos, gélidos, inclementes. O ônibus chega. Pessoas descem. Não parecem chateadas ou entediadas com o dia que vão enfrentar. Descem com um cobiçado crachá pendurado no pescoço e seguem seu rumo. Esperamos elas descerem para embarcar. Poderíamos formar um novo círculo de amizade. Trocar idéias, perspectivas. Um tentar ajudar o outro. No entanto, subimos em silêncio os degraus do ônibus e cada um senta num banco, o mais longe possível um do outro. Dói ter o QUASE estampado na testa. Dói ser chamado de guerreiro quando a guerra foi perdida. Dói a desesperança crônica do amanhã. Ah, diabos, esse banco é tão confortável, essa janela deixando entrar uma brisa agradável, essa cortina azul que me ajuda a pensar melhor tirando o brilho direto da luz do sol do meio-dia dos meus olhos. Todos nós, agora, precisamos de um abraço capcioso. Sim, um abraço que trairia a nossa vontade de conter uma mágoa, que nos faria choramingar a perda do que sequer foi ganho. O ônibus segue, a paisagem vai se alterando, tornando-se familiar. Por fim descemos na estação de metrô, e, conforme o previsto, cada um segue seu caminho. Um tchauzinho sem graça acompanhado de um "boa sorte" é o último vínculo que temos. "Que o demônio os acompanhe", ouço alguém dizer. Olho em volta e não há ninguém tão próximo pra sussurrar algo no meu ouvido. Enfrento a fila para comprar o bilhete. Outro maço de dinheiro que fica menor. Entro no metrô. As portas fecham. Ele segue seu caminho linear. Percebo que digitando a palavra ESFÍNCTER no modo T9 do celular o programa não reconhece a palavra e, com isso, dá a palavra FREIOCU. Dou risada da minha descoberta idiota. "Foi a primeira vez que sorri hoje", digo pra mim mesmo.

Não sei como terminar isso...

Também não soube dar um título decente.

Potencial pra nada.

04/01/2011 - 12:00hs

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 05/01/2011
Reeditado em 05/01/2011
Código do texto: T2709966
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