A Consulta
A Consulta
- O sr. tem se sentido indisposto? – indaga o médico.
- Quando levanto, me sinto muito indisposto – revela o paciente.
(A partir de agora, para facilitar a leitura, vamos caracterizar o médico pela letra M e o paciente pela letra P. Assim, quando o médico estiver falando, aparecerá a letra M e, na vez do paciente, a letra P. Ambas as letras estarão em maiúscula).
M - E como o sr. faz para lidar com essa indisposição?
P – Eu tomo uma cachaça.
M – Amarela ou branca?
P – Com a amarela confesso que me sinto muito melhor mas, já aviso o sr. que nem sempre encontro a amarela. Então tomo a branca mesmo.
M – Humhum (anotando: melhoria do quadro com cachaça amarela). Quantas o sr. toma?
P – Ora...tomo o dia inteiro, nunca contei. O sr. quer que eu conte?
M – Humhum (anotando: várias ingestões ao longo do período). Quando o sr. tomou a última dose?
P – Agora mesmo, antes de entrar no consultório.
M – Amarela ou branca?
P – Amarela.
M – Como o sr. está se sentindo?
P – Oh, com a amarela é muito melhor. Muito melhor. Se bem que, semana passada, sofri um lapso de tempo/espaço e, quando dei por mim, estava numa comunidade tomando cachaça com cobra. Quer dizer, dentro da garrafa havia uma cobra, acho que, acho que estava morta, não sei.
M – Hum hum (anotando: ingeriu recentemente cachaça com ofídio aparentemente inerte). Branca ou amarela?
P – Verde.
M – Humhum (anotando: c. verde). Qual a sensação que o sr. tem, ao despertar?
P – Mal, muito mal.
M – E, além da cachaça, o que o sr. faz?
P – Antes da minha mulher me deixar, ela costumava engolir, de manhãzinha, um comprimido amarelinho, pois ela tremia muito e chorava muito também. Depois se acalmava. Mas ela foi embora, sem que nem por que, e esqueceu os comprimidos lá.
M – Lá?
P – Em casa. Então eu tomei.
M – E o que o sr. sentiu?
P – Não senti nada, quer dizer, na hora não senti nada. Acho que, meia hora depois, senti sono e, para combater o sono, fui para o bar.
M – Amarela ou branca?
P – Verde. Foi o dia em que estive na comunidade.
M – Humhum (perda parcial de memória ocasionada por c. amarelinho). E durante o dia, o sr. se sente bem?
P – Ah, muito bem. Às vezes eu vomito, não sempre, só às vezes. Depois que vomito me sinto melhor, muito melhor.
M – Humhum (anotando: sente náuseas durante o dia) . O sr. ingere alguma coisa depois de vomitar?
P – Cachaça. Amarela ou branca. Tanto faz. Nessa hora, quero dizer, nessa hora tanto faz. Já dei sorte e uma vez me deram amarela, o sujeito achou que eu estava apontando para uma garrafa, porque eu, eu, balançava os braços, não estava passando bem sabe? Daí ele me serviu amarela. Foi uma sorte.
M – Humhum (anotando: mal estar após as náuseas). O sr. sente dificuldade para dormir?
P – Sempre senti, doutor. Desde criança, desde que trabalhava no alambique com meu avô. E, acho que sou sonâmbulo, quer dizer, fica difícil afirmar isso quando se está sozinho. Antes da minha mulher partir, ela vivia dizendo que eu andava pela casa gritando e quebrando móveis. Acontece que, de manhã, nunca me lembrava de nada.
M – Humhum (anotando: sonambulismo, crises, perda de memória). Mas o sr. dorme, a despeito das dificuldades para dormir?
P – Dormia melhor quando meu filho estava lá.
M – Lá?
P – Em casa. Ele também foi embora, Não sei por que. Foi antes da minha mulher. Ele tomava uns comprimidos.
M – Amarelos?
P – Brancos. Sim, eram brancos. De manhã, ele também chorava e tremia muito. Então tomava o comprimido, se acalmava e ia para o trabalho. Na época, cheguei a tomar esses comprimidos, confesso que dormia melhor mas acho que eles agravaram meu sonambulismo. Talvez tenham ido embora por isso, estavam doentes, então tomavam comprimidos.
M – Humhum (anotando: familiares doentes). O sr, já sofreu perda de memória sem os comprimidos?
P – Perdia muito a memória quando tomava cachaça direto do gargalo. Hoje uso somente copos. Mas, dependendo do lugar em que estou, acabo usando o mesmo copo. Eu...não posso afirmar se ultimamente tenho perdido a memória.
M – O sr. fuma?
P – Estava esperando o sr. me perguntar isso. Fumo. Filtro amarelo. Já tentei o filtro branco, mas, como dizer, não me satisfaz. Minha mulher detestava o cheiro do cigarro. Gozado, essa conversa está clareando minhas idéias. É muito bom conversar. Faço isso às vezes, com meus amigos do bar, mas quase sempre acaba em confusão. Ou parece até que eles não estão ouvindo. Mas agora, doutor, pensando melhor, acho que minha mulher não foi embora por causa do meu sonambulismo. Deve ter sido o cigarro, o sr. não acha?
M – Humhum (anotando: ....).