Visita a Guimarães Rosa

O dia cinzento desenha a paisagem no pára-brisa do carro. O movimento psicodélico fica por conta dos pingos da chuva que inebria a beleza da manhã no vitral a minha frente. Quanta contradição. Um adorável dia cinza, uma bela paisagem molhada e descorada. E o mais interessante, a torrente chuva banha a terra dos sertões mineiros onde foram pisados por “Manuelzão” e “Miguilim” do saudoso Guimarães Rosa.

Pequenas árvores espaçadas de troncos rudes e tortuosos confrontam a relva verde claro. São as mesmas árvores que compõe o cerrado ressequido de onde sobe o pó amarelado na seca, encobrindo o horizonte montanhoso que balança no azul quente. O que encobre a vista agora é a névoa da precipitação. Os cinzas ao longe, são unidos em seu espectro por nuvens espessas.

Chego à cidadezinha no ocaso da manhã, já sem chuva. Paro o carro em frente à simpática pracinha que tem como pano de fundo a estação ferroviária capaz de contar muitas histórias dos que vieram e foram ao longo de várias décadas. Após breve pausa contemplativa e um suspiro de saudade sabe-se lá de quê, dou meia volta, atravesso a rua e entro na casa de João Guimarães Rosa.

Emoção a flor da pele.

Uma casa muito antiga e simples. Soalho em madeira, janelas grandes na vertical, telha colonial. Na sala de estar uma imagem do ilustre escritor em “marca d’água” sustentando um belo trecho do seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras. No corredor a primeira porta a direita apresenta o seu escritório. Na mesa a escultura da vaca com o bezerro dentre outras estatuetas premiativas. Uma máquina de escrever preta. Não identifico a marca, só sei dizer que é de um requinte incomum acompanhado da simplicidade característica destas bandas sertanistas. Por esta ferramenta de tradução de uma mente brilhante já bailaram muitas vezes os dedos que compuseram as sinfonias mais sublimes deste sertão.

E lá estava ele. O próprio.

Diante da máquina novamente. Diante de mim.

Hesito por um instante. São tantas perguntas travadas pela condição do momento. Queria fazê-lo sentir meu aplauso pela capacidade impar de criar. Criara até mesmo palavras de forma singular. Perguntar sobre os famintos de Grande Sertão Veredas com suas visões deturpadas e deitar lucubrações sobre as deturpações visuais dos famintos de hoje.

Não ouso interrompê-lo. Ele continua com o olhar seguro na nova página. E eu retiro o meu olhar do momento mágico e o volto para o relógio. Infelizmente, é hora de ir. O sistema me rouba o tempo, mas jamais tirará de mim o infinito daquele momento tão inspirador quanto a página de um bom livro.

Entro novamente no carro após despedir-me. Sol a pino agora. Tomo meu rumo, aliás, ambos, o real e o imaginário. Um contrastando o outro, mas não sobreviveriam sozinhos.