Piada ou insulto?
Hoje declaramos guerra aos insultos. De toda e qualquer natureza ou ordem. E por falar em ordem não consigo mesmo decifrar a ordenação, ou numeração da série de insultos que vivemos atualmente. Da definição de insulto, entendo como sendo uma injúria, uma ofensa seja por atos e palavras. Ah, as palavras – somos mesmo brilhantes nesses tipos de insultos, aí sim podemos numerá-los sem noção de conta, pois nossa desatenção deixa passar a maioria das palavras que rendem e proclamam todas as mais tristes injúrias, sejam escritas ou faladas, conscientes ou acobertadas pelo nosso mísero modelinho popular – esse negócio de jeitinho brasileiro.
Gostaria de começar dizendo que receio muito em ter que me tornar um chato, quando não rio do mais famoso tipo de insulto brasileiro – a piada. A piada é uma forma de dito comum que vem associado ao fato de ser agradável para uma roda de amigos, ou de colegas, ou de inimigos. Dito isso, parece que em meio a esse tipo de comunicação em massa de insultos podemos mesmo confundir quem consideramos amigos. Pensando bem, podemos ser apunhalados, esfaqueados ou ridicularizados pela mais triste forma de insulto da cultura banal humana. São “alfinetadas”, perdidas em seus sentidos obscuros, mitificando e reduzindo nosso pensamento a um estímulo capaz de tornar a pior derrota ou tristeza humana num surto de graça. Picante para muitas pessoas, mas lamentável para grande parte dos personagens humanos representados nessa injúria.
Os negros, os portugueses, os índios, os alcoolistas, os de orientação sexual diferente, as mulheres, os soldados, as pessoas obesas ou magras, a desorientação social que permeiam ainda, os idosos, os portadores de necessidades especiais, os desempregados, os tristes, os mendigos, os profissionais do sexo, entre outros. A piada inclui o preconceito a tudo isso e a negação ou generalização do sexo. A rotulação do preconceito, da agonia e da insensibilidade. Tem também a gagueira, o envelhecimento, as etnias e a redução da relação sexual a uma mera obscenidade. As piadas sempre estão escorregando da boca das pessoas independente da realidade de existir e de ser de cada um. Denigrem e enodoam as imagens dos personagens simplificados, vistos de forma comum, corriqueira, desconexa e perdidas numa grave complicação de significado – o fato de rir quando se deve chorar.
As piadas não deviam mesmo existir, ou se deviam, poderiam ser rigorosamente desestimuladas pela noção clara ou encoberta de seu sentido de afronta violenta, de desrespeito e insensatez de quem a vomita, seja num lugar público ou numa mesa de jantar a dois. Aliás, ninguém conta muito piada quando se está a dois, já perceberam? Talvez o número de pessoas para rir seja pequeno demais, ou talvez, o que também acho possível, é o fato de a graça não estar na piada e sim no piadista. Agora sim, acho que podemos entender – o fato é que o piadista precisa de público, ele precisa ser visto, ser uma celebridade confundida com espécie de arte às avessas para ter renome de engraçado, popular, visto, simplesmente visto, mas não renomado. Ser piadista é mesmo uma arte da enganação ou do fingimento de uma dor, de um problema, de uma derrota, seja a do personagem da piada ou a dele mesmo. São derrotas esses tipos de insultos.
Para os que riem muito, que acham exagero tomar isso com afronta, vamos nos interessar pelo valor da palavra. A palavra não é apenas um conjunto de som articulados – a palavra é a significação, elas expressam idéias, constroem símbolos sociais, afirmações, pensamentos, doutrinas, expressam o que somos; o que queremos ser e quando escapulidas, o que não queremos ser. O piadista sempre escolhe um personagem que considera distante daquilo que ele é ou que desejaria ser. Escorrega entre o simples fato de não perguntar se o público todo, digo todo, está interessado em ouvi-lo, ou o fato de ser no mínimo atencioso para não ofender bruscamente alguém que se identifique com o tema, ou que tenha parentes que sofrem preconceitos disfarçados em formatos de piada.
Hoje declaro guerra às piadas – quase todas, de todos os tipos. Declaro inútil também seu conteúdo vulgar, de sentido pejorativo, preconceituoso e permeado de insultos. Declaro extremamente brega contar piada para aqueles que valorizam o poder da palavra. A palavra rende afetos, mas rende, neste caso, apatia e indolência às imagens do outro. Rendem o pior tipo de ironia, a zombaria insultuosa as diferentes condições humanas de ser, as diversidades, ao sofrimento que não tem graça. Rendem sorrisos que não duram, e ainda, sorrisos falsos e forçados pela hilariante idéia destorcida, infundada e desleal. Das piadas nasce o bullying. As piadas não dão direito de defesa ao ofendido, mas o ofende, pois institui na massa um grande rol de valores trocados, crendices e conhecimentos inadequados sobre um temário que repete o erro e divulga a opinião prejudicial. Piada é pra rir?