UM PASSEIO NA CIDADE DE SÃO PAULO

UM PASSEIO NA CIDADE DE SÃO PAULO.

Aclibes Burgarelli.

I - SAUDADE.

Saudade, torrente de paixão; emoção diferente que aniquila a vida da gente. Uma dor que não sei de onde vem. Somente a sensibilidade do cancioneiro para perceber a emoção diferente que recebe o nome de saudade. Expressão sem similar na fala das gentes do estrangeiro, porque brasileira é. Sou brasileiro, tenho saudade e a sinto juntamente com algo que aperta meu peito, meu coração e minha alma; entretanto, me faz muito feliz.

Viver com saudade é viver intensamente e a prova dessa assertiva está nos escritos que existem a respeito da Cidade de São Paulo, dentre os quais se destacam os de Afonso Schmidt, notável escritor nato de Cubatão o qual, embora nascido no ocaso do Século XIX ingressou, com fúria de saudade, no Século XX durante o qual traçou sua trajetória em favor da saudade de São Paulo.

II - O MENINO "QUINA".

Na mesma época em que brilhava a luz de Schmidt a Providência reservou para o menino Quina um pouco da mesma luz de tal sorte que a ele foi dada a oportunidade de se expressar, com o mesmo sentimento de saudade, a respeito de fatos que, na Cidade de São Paulo, tatuaram sua existência terrena.

Quina, a bem da verdade, foi o apelido que pegou. O nome de registro oficial era Roberto, entretanto, por causa da inexistência de antibióticos e no começo da utilização da penicilina, contra infecções, as pessoas que eram afetadas pelo vírus da gripe, lançavam mão de cápsulas de quinina, do tamanho equivalente a uma moeda de 0,50 centavos de hoje. Era freqüente a utilização desse medicamento manipulado, pela família de Roberto e ele fazia propaganda dos poderes curativos das cápsulas ao ponto de receber o apelido de Quina.

Porque era frágil, na estrutura orgânica, seus pais prometeram a si próprios que tudo fariam para proporcionar ao filho a maior liberdade possível, no que diz respeito a passeios, trabalho, estudo; enfim, o menino, com a devida orientação, faria o que bem entendesse fazer.

III - OS "SENTA PUA" DA F.E.B.

Aos dez anos de idade, com o fim da Grande Guerra, por volta de 1945, foi levado a passeio, pelas bondosas mãos da mãe, ao centro da Cidade, mais propriamente na Av. São João com a Av. Ipiranga, em direção ao Vale do Anhangabaú, porque, ali seria o desfile de recepção dos pracinhas brasileiros que participaram da F.E.B., os conhecidos “Senta a Pua”.

Quina ficou emocionado e embasbacado com o grande portal, montado na Av. São João, nas proximidades do Cine Metro; sobre a trave horizontal do portal estava a letra V, grandiosamente a representar a vitória dos aliados. Felizes foram os momentos de visualização da chuva de papeis picados que despencavam do alto dos edifícios então existentes naquele lugar. A cena e o lugar ficaram gravados na mente do menino o qual, dada sua idade, nada entendia de conflito mundial. Sabia apenas que seu tio, por ser pracinha da F.E.B., proporcionou ajuda à família, por meio da Legião Brasileira de Assistência – o que era muito bom para ele.

IV - O PRIMEIRO PASSEIO SÓ.

Pouco tempo depois, então na década de 50, Quina decidiu dedicar eventuais dias vagos para passear na cidade. Residia no Alto do Ipiranga, na Rua Bamboré, nas proximidades da Rua Dona Leopoldina, nas proximidades do conhecido salão de “bailinhos”, conhecido por Dom Pedro.

Nos dias em que havia permissão do pais, para os solitários passeios, lá ia o menino. Quando completou 13 anos de idade decidiu conhecer o Centro de São Paulo. Dirigiu-se ao ponto de bonde, na Rua Bom Pastor, altura do Instituto Padre Chico, para ser transportado no famoso “vermelhinho” da C.M.T.C. – Alto do Ipiranga, até o terminal da Praça João Mendes, onde se chegava subindo a Rua da Glória até seu início, local em que era feito o contorno para retorno, via Rua Conde do Pinhal e, novamente, Rua da Glória.

V - A CHEGADA AO CENTRO DA CIDADE.

O bonde "Alto do Ipiranga" concluia o trajeto na Praça João Mendes e o terminal era em frente ao prédio onde, no governo de Jânio Quadros, foi construído o Forum João Mendes Junior. Uma vez que todos os passageiros deixavam, nesse local, o coletivo. Quina segurou no balaustre, pisou firme no estribo e contente sentiu o calor dos paralelepípedos do calçamento, apelidados de "macacos". Seguiu em direção à Rua Onze de Agosto até a antiga Praça Clóvis Bevilacqua que era formada, com destaque, pelo prédio belíssimo do Tribunal de Justiça, em cujo frontispício destacava-se o título TRIBUNAL DE JVSTICA. À frente da Corte havia um grande jardim, com área propositalmente arredondada para que, nas laterais, pudessem ser instalados os abrigos de passageiros da linhas viárias que ali tinham ponto: Belenzinho, Fábrica, Vila Prudente, Mooca etc.

Preferiu a Praça Clóvis Bevilacqua, porque um vendedor de amendoim e caixinhas de uva passa, de quem ouvira referências por parte do pai, costumeiramente negociava, na condição de avulso, esse mercado de consumo rápido. Era um senhor negro, cabelos todos brancos e muito risonho. Usava um tabuleiro de madeira, dobrável e apropriado para corridas inesperadas, ante a presença dos “rapas”.

Com apenas vinte centavos, o bolso direito das calças era abastecido de amendoim torradinho. O vendedor usava uma latinha de massa de tomate, evidentemente sem a massa e que servia de medida padrão do produto, correspondente ao preço anunciado. O simpático senhor, com gratificante sorriso, ordenava que Quina abrisse o bolso direito e nesse recipiente despejava os amendoins. A propósito, Quina estranhava a preferência pelo bolso direito da calça e, certa feita perguntou ao vendedor porque não o bolso esquerdo. Em resposta o vendedor disse que era “canhoto”.

VI - NA PRAÇA DA SÉ O CINE SANTA HELENA,.

Da Praça Clovis Bevilacqua adiantou-se rumo à praça lateral, Praça da Sé, de onde se via o Edifício Mendes Caldeira ao longo e, do lado esquerdo, de quem olha a escadaria da Catedral, impunha-se o portentoso Cine Theatro Santa Helena, com outro cinema, menos expressivo, no subsolo do prédio, o Cinemundi. Olhou os cartazes a respeito dos filmes, mas, ao se lembrar da recomendação do pai, sobre a freqüência dos desocupados – ou ocupados com outros misteres – naquele cinema, deixou imediatamente o local, mesmo porque sua idade não permitiria adentrar no recinto, ainda que o quisesse.

Do lado oposto, quase que na Rua Direita, ao lado do Restaurante do Papai, cujo acesso era feito por uma escada descendente, havia um bar famoso onde eram servidos os saborosos sanduiches de pernil, porém de forma especial e exuberante quanto ao molho e ao modo de se fatiar a carne, com o uso de afiada faca. A peça, de suíno bem criado, que mais parecia uma enorme clava medieval, permanecia deitada em uma grande forma de alumínio, sob a qual se mantinha o calor tênue de uma peça incandescente de um fogão adaptado para a iguaria. O pernil não estava só, recebia a solidariedade de tomates suculentos e cortados em pedaços; cortes de pimentão vermelho que pareciam serpentinas e bastante argolas de cebola branca que mais pareciam brincos africanos, como a ornamentarem o totem assado; tudo a boiar na pequena piscina de azeite de tom avermelhado e responsável pela vaporização e volaticidade do sabor que instigava todas as narinas à grande distância.

De duas uma: ou Quina se punha a devorar o sanduiche ou cuidava de guardar o dinheiro para o transporte de retorno. Uma hipótese, necessariamente, excluiria a outra. Ademais, parte da verba disponibilizada pelos pais, já havia sido consumida e a prova estava no recheio do bolso direito das calças que teimava em manter o visível volume dos grãos torrados e acondicionados nas respectivas cascas.

Venceu a tentação da gula, aliás desejo próprio de adolescente, e conformou-se em manter o sabor que permanecia nas narinas e, depois, haveria de ficar na lembrança; e resoluto prosseguiu o passeio.

Naquela época, nos primeiros cinco anos da década de 50, a Cidade de São Paulo passara por notório crescimento populacional, com a vinda de brasileiros de outras cidades em busca de trabalho, porque borbulhavam oportunidades. Por essa razão o trânsito na Praça da Sé era intenso. Era permitido o estacionamento de automóveis e Quina tinha a mania de observar as marcas dos veículos: Plymouth, Skoda, Chevrolet, Ford, Studbaker, Anglia, Morris, Cadillac, Simca e muitas outras comuns naquela época. Olhou carro por carro e nesse exercício intelectual permitiu que se escoasse quase uma hora do precioso tempo reservado para o passeio.

VII - NA RUA DIREITA OS CAMELÔS INSINUANTES.

Satisfeito e atualizado quanto às marcas, cores e modelos dos veículos, reconheceu estar na Rua Direita, de grande movimento. Porque também pretendia atualizar-se com as músicas da época e não somente marcas de veículos, seu interesse foi maior nesse sentido. Ouvira, à distância, os gritos apelativos dos vendedores de letras das músicas de sucesso, confeccionadas em livretos. Gritavam: "Perdida", "Senhora", "Beja me Mucho", "Perfídia". Outros vendedores, como em uma disputa de nomes mais contundentes, bradavam em seguida: "Anjos do Inferno – Prá Variar". "Mocinho Bonito", "Ébrio", "Não Vou pra Brasília", "Tereza da Praia" e assim por diante.

Quina ria satisfeito com o espetáculo dos vendedores de letras musicais; aliás, todos os transeuntes que por ali passavam naquele momento riam e faziam troça. Passou em frente das Lojas Americanas, e suas quinquilharias anunciadoras de preços convidativos. Mas seguiu em frente até deparar-se com o prédio da loja de roupas masculinas “A Exposição” e os olhares dos manequins seguindo os passos dos pedestres em qualquer direção.

VIII - RUA SÃO BENTO E O BACHAREL DOS SUCOS E LINGUIÇA.

Dobrou à esquerda, na Rua São Bento, e novamente fora atiçado pelo atrevido sabor dos assados em peças roliças, de aço inoxidável. Grossos gomos de lingüiça giravam e a cada gota de gordura quenta o sabor estonteava qualquer estômago menos preparado para o assédio. O cheiro provinha de um pequeno estabelecimento, em cuja porta as pessoas exibiam belos sanduiches, em pão francês recheado de molho de cebola e tomate. Ao fundo serviam-se sucos de frutas que fluiam por meio de pequenos tubos, ligados a uma peça sob a forma de grande garrafa, com o nome da fruta: "manga", "maracujá", "graviola", "abacaxi" etc. Corria a notícia de que o proprietário, um senhor distinto que, posicionado em um tablado alto, na caixa registradora barulhenta, trajava camisa listrada, óculos pequenos e redondos, gravata borboleta e suspensórios. Sua voz lembrava a do famoso radialista Silveira Sampaio. Esse senhor teria se frustrado com a carreira jurídica, embora tivesse concluido o curso nas Arcadas, não levou consigo o sabor acadêmico. Decidiu vender sucos naturais e lingüiça calabresa...e ficou rico. O paradoxo da história residia na frequência, isto é na freguesia. Ao que se podia verificar a maioria dos gulosos eram acadêmicos da São Francisco.

IX - RUA RIACHUELO E AS VARAS DE BAMBU.

Alcançado o Largo do Ouvidor, impressionou-se com as Arcadas e seguiu em frente pela Rua do Riachuelo. Ali estranhou a presença de pessoas posicionadas em arcos, feitos de varas de bambu, mal vestidas, a discutirem negócios ininteligíveis para Quina. Estranho era o local em que ficavam essas estranhas pessoas, ou seja em frente ao soberbo prédio do D.A.E. de São Paulo. Em frente é o modo de dizer, porquanto ficavam mesmo encostados na parede do prédio, com uma das pernas dobrada e o pé a empurrar o prédio com a ajuda das costas. A primeira impressão gerada no espírito de Quina foi no sentido de que essas pessoas eram praticatantes de algum ritual pagão, cujo ambiente de trabalho era preparado com varas de bambu as quais exalavam odor forte de lodo. A estranheza, entretanto, foi dissipada ao perceber que um transeunte deu-se a negociar com o sujeito das varas o desentupimento de um esgoto na Lapa. A partir de então o passeador adolescente registrou no arquivo de sua intelectualidade mais uma lição de vida, quanto aos negócios realizados na Cidade de São Paulo. Aqueles homens ganhavam a vida com desentupimento de esgotos, tarefa para a qual as varas de bambu eram instrumentos indispensáveis. Quina prosseguiu e chegou à Rua Quintino Bocaiuva para o curto caminho de retorno entre a Rua Riachuelo e a Praça João Mendes.

X - A IGREJA SÃO GONÇALO E A PADRARIA SANTA THEREZA.

Não se esqueceu de fazer o sinal da cruz ao passar defronte à Igreja de São Gonçalo, onde descansava sua santinha protetora, em quem muito confiava.

O caminhar provocou sede e, com o dinheiro contado, não se deu ao luxo de um caldo de cana ou mesmo de seu refrigerante preferido, isto é o conhecido por “cerejinha”, refrigerante que teria o sabor completado se acompanhado das deliciosas coxinhas cremosas de galinha, provocativamente exibidas na vitrine da Padaria Santa Tereza. Impossibilitado financeiramente de expressivo gasto para essa aventura gastronômica, contentou-se com um copo americano de água, da torneira, gentilmente fornecido pelo garçom da padaria e o notável amendoim que, naquele momento, não era nada mais do que alguns grãos que se esconderam no fundo do bolso direito da calça de brim listrado.

Se portasse relógio – utensílio de luxo na época – Quina saberia que mais de cinco horas eram passadas; não se importou, porque estava no horário previsto.

XI - O LARGO SETE DE SETEMBRO.

No Largo Sete de Setembro avistou ao longo, na Rua da Glória, no sentido bairro/centro, o inconfundível bonde Alto do Ipiranga. Correu em direção ao terminal e conseguiu um lugar confortável em um dos bancos de madeira, instalado entre ambos os lados do coletivo, um atrás do outro, e, assim, cumpriu a promessa feita ao pai de não viajar no estribo.

Quase uma hora depois já estava próximo à Rua Bamboré, feliz com a viagem feita; recordava-se, com um escondido sorriso, das expressões provocativas dos vendedores de livretos de músicas da época: "Senhora", "Perdida", "Mocinho Bonito", "Ébrio"... Enfim, sem o expediente malicioso, no tom de voz, ao se anunciarem os nomes das músicas, os vendedores não conseguiriam vender o livretos.

XII - NOVAMENTE SAUDADE.

Hoje Quina está só, envelhecido, sentado em uma desconfortável cadeira de um Asilo qualquer, porque seus familiares não dispõem de tempo para dele cuidarem. O apelido se perdera no tempo. Agora, na condição apenas de Sr. Roberto, sente uma torrente paixão, uma emoção diferente que aniquilou sua vida...sente muita saudade.

aclibes
Enviado por aclibes em 01/01/2011
Reeditado em 11/01/2011
Código do texto: T2703182
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