Diário cardiovascular
Olá coração, sou eu. Um eu meio incrédulo e desacreditado, você sabe, mas você ainda pulsa aí dentro, eu bem sei. Entendo que seu pulsar andava meio fraco, sem muitas oscilações ou batidas fortes. É que a pouco uma notícia arrasadora me chegou aos olhos de maneira tão cruel como uma gélida pontada aguda na alma, assim que só pude trincar os dentes e apertar os punhos contra o peito: Existe outra pessoa entre nós, coração. Coisa estranha isso de três; logo se vê que nada a três funciona. O ser humano foi criado com dois olhos, uma boca, dois pulmões, uma língua, dois rins, um estômago. Até temos cinco dedos em cada mão e milhões de neurônios; mas três não, nada. Três é número indeciso, numero de empate, encruzilhadas e estagnação. Agora seu pulsar é grave e acelerado, eu sinto; porém essa amargura terrível, como explicar? É um pouco de fel misturado com frustração e choro miúdo.
Ainda salivo a boca. A língua inquieta para não perder o restante do gosto da esperança que havia nela. O nariz fareja um cheiro em vão, não é o seu. O cérebro cria as situações mais ordinárias para dar conforto ao meu corpo que dói a dor da sua perda: “ele virá, ele será seu, ele deixará o outro e virá aos seus braços, ao seu corpo, ao calor da sua pele num grande abraço intenso...”. Pena não poder voltar no tempo. Aposto que ele nem imagina o quanto minha cabeça divaga agora, de quantos pensamentos penosos e baixos se faz a minha diminuída massa cinzenta. E se ele largasse o outro para ficar comigo, se o outro precisasse viajar, porque todos sabem que nada é eterno. Eu sim o amaria diariamente e de maneira total; não haveria parcialidade entre nós. Você deve estar comprimido, ultrajado, não é coração? E ainda me dizem que pensar com o coração é coisa fácil, irreflexiva... Muitas pessoas dizem que é fácil mentir ao coração, que assim tudo fica mais leve e o sofrimento é temperado, fica mais tragável. Sei...
Mas acho que esse é mais um vírus, uma inflamação de sentimento. Nada que um medicamento laxativo para expelir falsas fantasias cardiovasculares. E após uma quarentena intensiva, creio que posso encarar outro dia, outra epidemia dessas de arrasar qualquer coração frágil e desacreditado. O único problema é que se mal cuidada, pode congelar o lado esquerdo do peito. Poderia haver nessa terra tão tecnológica um antivírus para o amor, desses que protege o nosso peito vinte quatro horas contra fatalidades do destino, Spams que nos prometem o mundo em uma oferta miraculosa; dessas que não duram ao menos um dia- muitas das vezes promessas vazias. Ou planos econômicos para uma felicidade mais fácil e em conta: tudo isso seria uma redenção para corações desavisados.
Fica aqui a necessidade de um dia dar certo, a fé e a esperança de se encontrar a outra metade da laranja única, sem terceiro ou quartos. Sem a dor ou a fantasia mais inventada ou tecnologia irrisória para conforto cardiovascular.