Retrospecto
Alice deixou-se esparramar no chão da varanda. Acima dela o sol se fazia perceber e uma gota de suor escorria pelo rosto claro.
Foram poucas vezes que o calor ardera esse ano, e por isso Alice nem ligou, queria era sentir o sol envolvê-la até sentir calafrios.
No céu límpido não havia nem sinal de nuvens. “Melhor assim”, Alice pensou. Na varanda ela podia apreciar a imensidão do verde, ouvir o silêncio que só a mata sabe como fazer.
Alice sentira falta disso: Da lerdeza das tardes, do frescor do mato pela manhã, sentira falta de respirar esse ar, de andar descalça na grama molhada pelo orvalho, do cheiro que a chuva trazia.
Com os olhos fechados viu 2010 passar numa retrospectiva subjetiva. Chovera muito por aqui, mas em Alice chovera muito, muito mais. Muito mais do que as inundações que a televisão mostrara.
Os terremotos que sacudiram o mundo eram parecidos com os que sacudiram Alice.
Alice.
Alice não queria pensar nisso agora, agora que tudo poderia ficar bem. Mas, Alice sabia que era necessário relembrar e mergulhar nos seus desvarios e provar que sobrevivera a si mesma: Fora necessário o paradoxo de se perder para encontrar-se. Fora preciso confrontar sonhos e crenças, e essa não lhe foi uma caminhada suave.
Viu o ano passar num segundo, o ano que custara tanto a terminar estava nos últimos dias. “Finalmente”.
Relembrou as primeiras horas de 2010, o choro contido, a triste certeza de que não havia mais com o que se surpreender, nem se decepcionar.
E os dias cinzentos que se seguiam fielmente iguais. Alice só fazia chover dentro de si.
Chovia quando se lembrava de onde nascera.
Chovia ao reparar no cinza que reveste toda cidade grande.
Chovia ao trabalhar.
Chovia quando se deparava com a miséria nas ruas.
Chovia pelo glamour fútil e inútil.
Chovia ao se deitar.
Chovia ao telefonar.
Chovia na hora de levantar.
Chovia à tarde que alagava São Paulo e o coração de Alice.
Chovia em Alice e no mundo.
Chovia choro de desespero, choro de saudade, choro de desalento, choro de desabafo, choro de dor, choro de revolta, choro de incerteza, choro de angústia, choro de Alice.
Como chovera o choro de Alice nesse ano.
Deitada, Alice agora sorria. O sol envolvendo seu corpo e ela sentindo-se mais viva do que outrora pensava ter sido.
Fora preciso se perder, mergulhar no nada, esquecer-se por um instante e um pouco mais e mergulhar na angústia que tanto doía, querendo ser vista.
Fora preciso coragem para rever suas decisões e desejos. Alice revisara-os um a um, e isso doeu mais que a dor dantes sentida.
O terremoto das verdades que descobriu não serem suas tremeu o mundo de Alice, e muitas das suas convicções ruíram.
Nos destroços Alice foi descobrindo verdades: próprias e suas.
A tarde se esvaía.
Alice sentia aquela morna felicidade que vem depois de uma tempestade de verão.
Foi preciso a chuva para florir.
Não é isso que diz a canção?
Raquel de Camargo
30/12/2010