Dezembro

Escrevo em uma agenda de 1999. Hoje me dei conta de que vamos entrar em outra década. O poema de Natal de Vinícius nunca significou tanto quanto agora. “A poesia se lê pelos sentidos” disse John Keats, poeta que morreu aos 25 anos. Que belo filme! Bela fotografia, bela música, bela estória. O barulho da agulha entrando no tecido, a presença do vento no quarto, a poesia das borboletas, dos vestidos, do frio.

Dezembro – o derradeiro mês trouxe-me tantas adversidades... O elemento água, mais presente do que nunca: no dilúvio da casa – goteiras em todos os cômodos e a pior delas, sobre a minha cama, presença constante gota-a-gota.

No dilúvio da alma - “por isso temos braços longos para os adeuses”. Duas mortes em menos de uma semana. A contemplação assombrosa dos enormes antúrios na coroa de flores; o gatinho que miava entre os suportes do caixão, o abraço frio da irmã morte. Dois acidentes; carro, cavalo. Dois homens, 41, 45 anos. A minha imobilidade frente ao desabar de uma amiga. O choro rebrotando a cada novo abraço. A notícia inacreditável pelo telefone. Eu andando pelo corredor sem saber o que fazer, tomada pelo susto, pelo inesperado, lembrando que ele me falara que o animal que mais mata no mundo é a abelha; contando as façanhas de quando iam para a escola e espantavam as meninas ao passarem pelo córrego a cavalo. A cavalo...

Minha avó não vai à velórios, minha mãe não olha para o defunto, já eu, fora meu avô que morreu quando eu era criança, debruço-me sobre os meus mortos. Acaricio com meu rosto o outro rosto, as mãos... encosto meus lábios e deixo que as lágrimas escorram e sinto, sinto, sinto tanto pela não presença do corpo cadavérico. Choro pouco por mim... mais pelos outros... Choro pelo pai sentando a cabeceira do filho morto, pela viúva que lhe acaricia o peito como se estivesse deitada ao seu lado, pelos filhos que nada entendem sobre perdas, pela procissão dos que entram e dos que saem.

Algumas coisas a gente vai melhorando com o tempo. Melhorei meu jeito de chorar: antes o choro era contido e explodia em caretas faciais. Agora, os músculos do rosto permanecem relaxados e as lágrimas vão escorrendo. Talvez esta seja uma das expressões do “desassossego da gota serena”.

Logo, meu primo se casa. Após dois dias de puro pesar, o brilho do olhar dele me comove. As roupas de gala, a pose para as fotos e a música... a música me deflora em sentimentos, ora melancólicos, ora alegres e eu mesma me tomo para dançar. A arte, como sempre a transcender-me.

Logo, a ceia de Natal. Melhorei em outra coisa também: no comer. Utilizo de todos os sentidos possíveis para desfrutar, saborear, sublimar o prazer do alimento que passa a fazer parte do meu ser. Ai... a leitoa assada! a farofa esplêndida! a salada com mussarela de búfala! o bom tempero do peru – uma ótima perdição. Após deixar minha mãe com a família enorme do meu padrasto, vou para uma ceia familiar com seis pessoas. Nada mais singelo, doce, próximo. Todos sentados ao redor de uma mesma mesa, rindo de qualquer coisa e eu me deliciando por estar ali. Simples como o prazer de um jogo de cartas.

De volta a minha casa – respiro. Aprecio as pessoas com as quais trabalho, anseio para que a mudança de casa não passe do próximo mês (oh), vejo filmes pois a solidão cobra companhia, acordo com os ratos correndo pelo estuque, ando de bicicleta admirando alguns jardins e casas e ouço passar o vento...

“ e só de ouvir o vento passar, vale a pena ter nascido”.

30-12-2010

Lígia Martins
Enviado por Lígia Martins em 30/12/2010
Reeditado em 12/01/2011
Código do texto: T2699587
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